O charme da tradição está de novo na moda

Agora sob o comando de Maria Cristina e a filha Tereza, A Fidalga dá lições sobre oferecer experiências, o novo mantra do varejo. Quase centenária, tem muito a dizer sobre fidelização, atendimento e marca

Inês Godinho
02/Fev/2016
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O charme da tradição está de novo na moda

 

A Fidalga faz 88 anos de funcionamento ininterrupto em fevereiro de 2016, sem nunca ter mudado o endereço no centro antigo de São Paulo. Contrariando as leis do varejo, a loja de calçados mantém a mesma decoração e serve o mesmo perfil de clientela, definido no começo do século 20.
 
Uma explicação sobre sua surpreendente longevidade pode ser encontrada em alguém tão contemporâneo quanto James Farnell. Ele é presidente do Retail Design Institute, uma consultoria colaborativa de design dedicada ao varejo e participante de honra da feira anual de varejo em Nova York.

A FIDALGA DEPOIS DA RESTAURAÇÃO DA CASA DAS ARCADAS

Na NRF 2016, Farnell apresentou o que seria a receita de uma loja de sucesso. A Fidalga faz gol em quatro dos cinco elementos-chave.

1 – CONTEÚDO RICO - Produtos e vendedores transmitem o negócio

Desde a fundação em 1928, por José Hernandez, seguindo os passos do pai espanhol, A Fidalga pode ser considerada uma loja com estilo próprio. E alcançou este feito porque há um conceito amarrando o mix de produtos, embora seja certo que nenhuma dessas palavras do jargão do comércio de moda fizesse parte do repertório do patriarca.

“É muito importante saber comprar”, reforça Maria Tereza Hernandez Pessoa de Queiroz, administradora da loja e terceira geração a participar do negócio. A família tem o que ela chama de feeling do que vai vender. E, segundo o mandamento da empresa, só é possível saber o que vai vender se houver uma empatia total com o cliente.

Os vendedores da Fidalga são treinados para entender o cliente e conhecer tudo sobre o produto. O foco do negócio consiste em vender sapatos de couro legítimo, feitos manualmente, em modelagem clássica e confortáveis a toda prova. Para ter esta informação, o vendedor precisa conhecer a cadeia de valor do negócio.
 
“Frequentemente, escutamos a frase ‘sei que só na Fidalga tem”, conta Maria Cristina Hernandez Pessoa de Queiroz, que ficou à frente do negócio até a chegada da filha Tereza. Agora, continua responsável pelas compras, pela capacitação dos vendedores e pela recepção aos clientes fiéis.    

2 – PERSONALIZAÇÃO – Atendimento e produtos parecem sob medida

A loja mantém em estoque 10 mil pares de sapato. Declaradamente, a Fidalga trabalha com estoque e isto tem uma finalidade estratégica. “As pessoas sabem que vão voltar e encontrar o mesmo modelo e numeração”, explica Tereza.

MEZANINO GUARDA O ESTOQUE DE PRODUTOS, SEMPRE À VISTA

Só é possível manter este modelo de negócio porque a loja atende um nicho de mercado e, voltando ao início, sabe o que vai vender e consegue fazer uma compra direcionada.
 
Para chegar a esse conhecimento, conquistar a confiança do cliente torna-se requisito essencial. Bom atendimento se faz em pequenos detalhes. Atendendo a um costume da época, até hoje a loja mantém os provadores para o público feminino, um espaço preservado da vista alheia, com bancos de carvalho forrados de veludo. Embora as mulheres de hoje não estejam mais impedidas de mostrar os tornozelos, as herdeiras fazem questão de oferecer a regalia.

UM DOS QUATRO PROVADORES: PRIVACIDADE PARA CLIENTES NO INÍCIO DO SÉCULO 20

E se está com o cliente, o vendedor faz com que se sinta o centro do mundo. “Baixar a loja” para uma única compra e gastar mais de duas horas com um único freguês fazem parte do ritual de atendimento. O cliente não pode perder a viagem. 

“Não dá para inventar no nosso negócio. Sabemos do que o cliente gosta em termos de cor, de modelagem”, disse Maria Cristina. “Desde o início, atendemos muitos advogados, pessoal do Judiciário e funcionários públicos.” São atividades que mantém um código de vestuário marcado pela tradição.

Segundo Maria Cristina, os jovens se tornam clientes porque ter um sapato comprado na Fidalga, masculino ou feminino, ainda representa um símbolo de ascensão nesses setores.

3 – SOCIALIZAÇÃO - Loja reforça o pertencimento

Muitos funcionários da Fidalga têm mais de 10 anos de casa e alguns chegam a 20 anos. Saem quando se aposentam. A baixa rotatividade da equipe garante a memória e transmissão da cultura criada por José Hernandez, pai de Maria Cristina.
 
No prédio histórico onde está instalada a loja, funcionavam alguns dos mais reputados escritórios de advocacia da cidade. Lojista e clientes conviviam no mesmo espaço. Em volta, entre as praças da Sé e Patriarca, ainda ficam alguns dos principais órgãos da Justiça paulista e da estrutura administrativa municipal e estadual.
 
Sedes de grandes empresas estavam ali, antes da grande mudança urbanística da capital. Muitos foram trabalhar longe, mas a fidelidade ao estilo da Fidalga se manteve. Há uma afinidade natural entre os frequentadores, simbolizada pelo classicismo e qualidade dos sapatos. O sentimento se transmite pelas gerações. 

Muita gente vem do interior para encontrar seu modelo predileto e reencontrar um ambiente acolhedor. Embora tenha site na internet, com apresentação dos produtos, “não pretendemos fazer venda online”, explica Tereza. “Não combina com o perfil dos nossos clientes. Eles fazem questão de provar o sapato.”

Os sete funcionários entendem e alimentam esse espírito. “Tenho uma cliente de idade que vinha com a mãe aos cinco anos”, conta Maria Cristina. “Enquanto provam sapatos, as pessoas nos contam sua vida, os problemas que enfrentam, a dificuldade de encontrar um modelo que não cause dores nos pés.”

Atenção e paciência com cada um são palavras de ordem na Fidalga. Para Tereza, esta tradição garante a perenidade do negócio. Embora boa parte da clientela tenha idade avançada, a renovação do público não é uma questão que preocupa os proprietários. “O fenômeno da longevidade só vai nos favorecer”, considera.

4 - EXPERIÊNCIA SOCIAL – O cliente mergulha no clima da marca 
 
A loja foi instalada no edifício Casa das Arcadas, uma imponente construção de esquina na rua Quintino Bocaiuva, tombada pelo patrimônio histórico e atualmente propriedade da Fundação Alvares Penteado, que restaurou o prédio.

Na construção, o fundador se inspirou no comércio elegante de Milão para fazer a loja mais chique da cidade. As vitrines ficam do lado de fora e podiam ser olhadas pelos passantes mesmo com a loja fechada (infelizmente, a insegurança da cidade obrigou ao fechamento total fora do horário comercial). Nos velhos tempos, garotos vestidos de libré e luvas brancas ficavam na entrada para abrir as portas dos carros e ajudar os clientes a descer.

Vestígio nostálgico que Maria Cristina considera parte da “alma do negócio”, os atuais vendedores se vestem com uma espécie de uniforme – calça social, camisa de manga longa e gravata. Combina com os produtos clássicos, o mobiliário em madeira de lei, preservado desde a fundação, as galerias suspensas que guardam o estoque, decoradas com madeira entalhada. 

Os funcionários ainda precisam subir e descer as escadinhas estreitas para buscar os produtos. Os controles são feitos manualmente. Código de barra ainda não faz parte das ferramentas de gestão. 

5 - RUPTURA – Ousar diante da concorrência acirrada

Não contem com a Fidalga para adotar o quinto mandamento do consultor Farnell para uma loja de sucesso. “Não vamos mudar, essa é a força comercial da Fidalga”, defende Maria Cristina. De certa forma, não deixa de ser uma ruptura com o padrão moderno.

A filha Tereza atribui a longevidade e sucesso da loja à união familiar em torno do trabalho duro. “A maioria das empresas familiares desaparece quando chegam os filhos e netos e não há união nos interesses.”

A Fidalga não teve interrupções na administração da família Hernadez. Depois do pai, veio o filho mais velho, que ficou à frente do negócio durante 36 anos, substituído pelas duas irmãs quando ficou doente. Agora, Cristina prepara a filha para transmitir o bastão.
 
Por enquanto, a administradora divide a direção da loja com a mãe e o pai, um executivo aposentado, responsável pela administração financeira. Ela chegou há oito anos, depois de trabalhar em grandes empresas na área de comércio exterior. 

Em tudo, a família quer ser o oposto do modelo fast fashion que dominou o setor calçadista. “Não queremos ganhar milhões, mas ser reconhecidos pela qualidade”. Concorrente? Ela pensa um pouco e diz: “Não temos concorrente em São Paulo, os próprios fornecedores dizem que nossa loja é única.”

Seguindo o pensamento do consultor James Farnell, na NRF 2016, está cada vez “mais difícil para as marcas se diferenciar e aumentar o volume de vendas e a lealdade dos clientes”. 

Ele defende que a diferenciação definitiva é a experiência, “e muitos varejistas estão respondendo a esse desafio diversificando seus portfólios, com produtos e serviços menores e mais únicos.” Tudo indica que o moderno varejo tem algo a aprender com a quase centenária A Fidalga. 

 

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