Mente sã, bolso são
Comportamentos, hábitos e até doenças agem silenciosamente no processo de endividamento excessivo. Conheça-os

Consumir já é prazeroso – pagar só depois traz uma sensação melhor ainda. A certeza de que tudo dará certo no dia do pagamento da fatura é grande. Mas quando isso não acontece – e a dívida começa a crescer – é hora de parar para pensar sobre as atitudes e emoções que cercam a relação com o consumo e o dinheiro.
A receita para consumir de forma saudável consiste em gastar menos do que recebe e planejar as aquisições de maior valor, com uma poupança prévia. Na prática, parece bem simples, mas a atitude nem sempre é tão racional assim. Prova disso é que muitas vezes essa relação acaba saindo das planilhas e indo parar na cadeira do terapeuta.
O comportamento que mais frequentemente favorece o consumo descontrolado e sem planejamento, segundo especialistas, é o excesso de confiança. Um exemplo disso, em âmbito coletivo, é o que o próprio país vive atualmente, com uma dívida maior do que a receita. Quando os gastos foram feitos, havia confiança de que o dinheiro viria – de dentro da própria economia e do exterior. O problema foi se arrastando até o ponto que não parece haver solução. E é assim que fica a cabeça do superendividado.
No campo particular, o endividamento excessivo e a inadimplência também podem ser causados por uma doença: a compulsão por compras. Mas esta atinge poucos daqueles que estão com as contas no vermelho. Mais que isso, não se trata de um mal passageiro, mas de uma patologia que se arrasta por muitos anos.
Confiança em excesso e o comportamento compulsivo são os inimigos invisíveis dos endividados, de diversos perfis. O fato é que, dependendo do grau e do estrago que comportamentos e sentimentos causam ao bolso e à saúde, devem ser tratados no divã, em terapias em grupo ou com medicamentos mesmo. Conheça alguns deles:
Por trás do endividado há o excesso de confiança – que nada mais é do que a sensação permanente de que, por pior que seja o problema, uma saída para ele será encontrada em tempo. Os brasileiros já assistiram a um movimento generalizado nesse sentido, especialmente quando a oferta de crédito no mercado era farta. Até hoje, mesmo em tempos de crise econômica, o excesso de confiança continua presente, levando consumidores ao olho do furacão.
Quem se endivida demais devido a esse comportamento – e não encontra crédito ou outra solução para quitar os débitos – pode ficar ansioso ao ponto de chegar a um esgotamento psíquico, ou seja, com perda da capacidade de raciocinar.
Vera Rita de Mello Ferreira, psicóloga econômica e membro do NEC-CVM (Núcleo de Estudos Comportamentais da Comissão de Valores Mobiliários), diz que, em geral, esse devedor não se considera endividado até ficar inadimplente. Em geral, pensa que vai dar conta de tudo e que a situação não é tão grave, já que outras pessoas também passam por isso.
“Quando a pessoa não encontra uma solução para sair das dívidas, passa por um processo gradual de esgotamento da capacidade cognitiva, se sentindo cada vez mais acuada. No fim, só pensa nisso e perde as condições de raciocinar, analisar e buscar um encaminhamento”, afirma.
No atual momento de crise econômica, parece que a confiança do consumidor está em baixa. Mas isso nada tem a ver com o viés estudado pelas finanças comportamentais. Esta é a confiança do consumidor diante do cenário, quando ele é racionalmente questionado sobre suas perspectivas. Aqui, o foco é aquela confiança que acontece no campo emocional, sem que a pessoa perceba, aquela perspectiva de que "na hora vai dar um jeito".
“Só que ele aparece de outra forma. A pessoa nega o problema pelo tempo que puder e, apesar de se sentir desamparada e incapaz, ainda acha que vai dar conta do recado”, explica Vera Rita.
O comportamento, completa a especialista, está associado à sensação de onipotência, que é o oposta a da impotência. “Ambos são a negação da realidade. A diferença é que a pessoa gasta toda a onipotência até ficar em um estado de esgotamento. E só consegue sair com a ajuda de fora”, diz.
Quem está nesta situação deve buscar ajuda o quanto antes. Isso porque o endividado costuma levar tempo demais para buscar suport e, durante esse período, paga mais e mais juros e a dívida cresce.
Quem acompanha pessoas superendividadas diz que os efeitos psicológicos desse processo são fortes. Muitas vezes, os devedores precisam do suporte de profissionais de saúde.
Diógenes Donizete, coordenador do Programa de Apoio ao Superendividado do Procon-SP, diz que os superendividados chegam ao local muito estressados, com autoestima baixa e um sentimento forte de fracasso.
“O fato é que muitos têm vergonha de vir ao local para fazer a triagem e a entrevista, principalmente os homens. Conversei com um que agendou três vezes e só conseguiu entrar no prédio do Procon quando a esposa veio junto. A sensação que eles sentem é de enorme fracasso por não ter conseguido organizar as contas da família”, conta.
Vera Rita diz que a depressão não acomete todos os endividados. “Depende de cada pessoa. Alguns ficam com mania, em estado de euforia e de negação de tudo. Outros, revoltados, e na posição de vítimas do mundo. Estes dizem que a culpa é sempre do outro”, afirma.
Por isso, diz Donizete, o Procon está desenvolvendo uma ferramenta online de triagem e coleta de informações iniciais dos superendividados, para que possam evitar o primeiro constrangimento – que é a de buscar ajuda no próprio local.
“O consumidor poderá baixar o programa em casa e inserir as informações. Será parecido com o programa da declaração de Imposto de Renda da Receita Federal. Depois de enviar informações, será convidado a se reunir em grupos de 30 pessoas”, afirma. A ferramenta tem previsão de ser lançada em setembro.
Com a crise econômica, a procura pelo serviço aumentou 400%, segundo o Procon-SP. Quem buscou atendimento no começo de agosto, por exemplo, só conseguiu agendar para outubro. No ano passado, o tempo de espera era de 35 dias. A capacidade de atendimento é de 50 pessoas por semana.
Alguns dos consumidores que chegam ao programa do superendividado do Procon-SP precisam de um tratamento especializado: os compulsivos por compras.
“São pessoas que identificamos no decorrer das palestras, que relatam ter comprado 72 calças jeans nos últimos quatro meses, o que é fora do comum. Sabemos que não há acordo de renegociação de dívida que resolva esse problema e informamos que há um serviço especializado para atendê-los”, conta Donizete.
TATIANA: "COMPULSIVO ESTÁ À MARGEM DA RECESSÃO"
O serviço é prestado pela Programa de Tratamento de Compradores Compulsivos do Pro-Amiti, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC).
Tatiana Filomensky, coordenadora desse serviço, explica que o comprador compulsivo está à margem da situação econômica do país, ou seja, não há mudança no transtorno em tempos de recessão. Isso porque a compulsão é uma doença que desequilibra a razão e a emoção. Quem sofre dela não consegue frear o impulso de consumir.
“O compulsivo vai atrás de financiamento e dá um jeito de conseguir dinheiro. Com a situação econômica ruim, pega mais dinheiro a uma taxa de juros alta e tem um problema financeiro maior”, afirma.
Quando não consegue fazer isso, quem sofre do problema começa a ter sintomas como irritabilidade, inquietação, sudorese, taquicardia e ansiedade.
Tatiana diz que a compulsão costuma aparecer cedo, quando a pessoa entra no mercado de trabalho, aos 18 anos aproximadamente.
“Passa por fases de descontrole e de conserto da situação, muitas vezes com a ajuda da família. Mas depois que casa, tem filhos, a cobrança é maior e a pessoa começa o tratamento”, conta a coordenadora. O tratamento consiste em consultas com psiquiatras, que podem receitar medicamentos, além de terapias em grupo.
Para Tatiana, a relação entre vícios nocivos à saúde e a compra compulsiva não pode ser estabelecida comprovadamente. “É pontual o uso de álcool por compradores compulsivos. E o vício em tabaco está mais relacionado ao jogo”, afirma.
A falta de autocontrole que vem do hábito de consumir mais do que quatro copos de bebida alcoólica por dia, fumar demais e ter necessidade de presentear alguém pode estar associada à inadimplência.
CONTROLE DE HÁBITOS INFLUENCIA O BOLSO
Pelo menos é o que sinaliza uma pesquisa conduzida com 975 pessoas e publicada em um artigo de autoria dos irmãos Pablo e Dany Rogers, professores de finanças da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e José Roberto Securato, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), que orientou a pesquisa.
O estudo, que foi realizado em 2010, mostrou que esses três hábitos aumentam as chances de uma pessoa ficar com o nome negativado.
Segundo Dany, os entrevistados responderam um questionário extenso e tiveram os CPFs consultados em birôs de crédito para que fosse determinada a relação entre esses hábitos e a negativação.
“Identificamos que pessoas otimistas e autoconfiantes também tem a tendência de ter um score (probabilidade de ficar inadimplente) alto”, disse.
Ele explica que não é possível determinar o quanto exatamente esses hábitos aumentam a probabilidade de ficar endividado, mas disse que o próximo passo da pesquisa será avaliar a questão por outro lado – pela ótica dos efeitos.
“Queremos saber se a inadimplência leva a beber e a fumar mais e quanto isso influencia na saúde da população. Estamos buscando financiamento de agências públicas para esse estudo”, concluiu.
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