Lula depõe como réu e faz de interrogatório um reality show
Ex-presidente foi indiciado em Brasília por tentar comprar o silêncio de Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras. Disse ser vítima de "um massacre"

O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva transformou em reality show seu depoimento de uma hora, como réu, nesta sexta-feira (14/3), na 10ª Vara Federal de Brasília.
Negou todas as acusações que lhe foram feitas e se fez de vítima de perseguição política e judicial. Disse estar sendo objeto “de um massacre”.
Foi seu primeiro depoimento a um dos cinco processos em que ele está indiciado na operação Lava Jato – três correm em Brasília, e dois, em Curitiba.
Ele foi desta vez acusado de crime de obstrução de Justiça, por tentar comprar o silêncio de Nestor Cerveró, o ex-diretor da Petrobras.
O processo foi aberto em julho de 2016, depois da delação premiada do senador cassado Delcídio do Amaral, que foi líder do governo petista no Senado.
No processo deste primeiro depoimento, Lula é acusado de comandar um esquema para impedir que Cerveró fizesse delação e implicasse dirigentes petistas no escândalo de sangria da Petrobras.
Delcídio disse, ele próprio na qualidade de delator, que recebeu dois pagamentos de R$ 50 mil do pecuarista José Carlos Bumlai, e que o dinheiro se destinava a comprar o silêncio de Cerveró.
Bumlai foi um grande amigo de Lula, e a necessidade de suborno teria sido tratada entre o próprio ex-presidente e Delcídio, em reunião na sede do Instituto Lula, em São Paulo.
RETAGUARDA DE 17 ADVOGADOS
Tais fatos foram desmentidos pelo réu durante a audiência, o que já era esperado para quem tem hoje a retaguarda – segundo informações no meio jurídico –de 17 bons advogados.
Mas não foi apenas pelo conteúdo que o depoimento de Lula desbancou os demais assuntos políticos desta terça-feira.
Valeu também pela retórica própria a um discurso de palanque em ato público de petistas e também pela tonalidade informal e quase histriônica com que Lula se pronunciou.
Um exemplo: “o senhor sabe o que que é o senhor acordar todo dia achando que a imprensa tá na porta de casa porque eu vou ser preso?”
Ou ainda: “há mais ou menos três anos, doutor, eu tenho sido vítima, eu diria, quase que de um massacre. Todo santo dia, no café da manhã, no almoço e na janta, alguém insinuando `tal empresário vai prestar uma delação e vai acusar o Lula`, `tal deputado vai prestar uma delação e vai acusar o Lula`. `Prenderam o Delcídio, vai delatar o Lula`, `prenderam o Papa, vão delatar o Lula`.”
O réu foi respeitoso com o juiz Ricardo Leite, que aceitou a denúncia do Ministério Público e formulou a denúncia em sua vara.
A tonalidade amistosa e a boa educação contrastaram com a agressividade dos advogados de Lula que acompanham os depoimentos de Curitiba, onde o juiz é Sérgio Moro, estigmatizado pela defesa petista e pelo próprio Lula como um homem empenhado politizar as investigações para colocar o ex-presidente na cadeia.
LULA SÓ PROCURA ESTIGMATIZAR SÉRGIO MORO
Lula foi hábil nesta segunda-feira em Brasília. Se for para ser condenado em primeira instância, ele “prefere” que a condenação saia das mãos de Sérgio Moro, a quem acusa de persegui-lo.
Uma condenação em Brasília representaria uma quebra no roteiro que tem sido alardeado dentro do Partido dos Trabalhadores e entre simpatizantes estrangeiros.
Em 2016, logo após o impeachment de Dilma Rousseff, os advogados de Lula apresentaram uma queixa à Comissão de direitos Humanos da ONU, em Genebra.
A denúncia – que visava justamente a Lava Jato – está arquivada, mas fez barulho na mídia e mobilizou alguns deputados de esquerda no Parlamento Europeu.
Detalhe: se fosse para buscar no exterior reparação a uma perseguição ocorrida no Brasil, os advogados de Lula deveriam ter procurado a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujas convenções têm valor jurídico no Brasil.
De certo modo, o depoimento de Lula nesta segunda-feira em Brasília pode também ser visto como um ato de campanha, pouco importa que ele esteja apto a se recandidatar à Presidência em 2018.
A peça de oratória que ele produziu tem o mesmo impacto emocional do discurso feito na véspera em Brasília, para sindicalistas da agricultura familiar, ou do discurso que fará no sábado na Paraíba, em ato no qual reivindicará a paternidade da Transposição do rio São Francisco, cuja primeira etapa acaba de ser inaugurada pelo presidente Michel Temer.
Orador de inegável competência, Lula disse, na 10ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, duvidar que entre pessoas já presas ou que ainda o serão “tenham a coragem de dizer que um dia me deu dez reais, que tenham a coragem de dizer que Lula deu cinco centavos para ele. ”
"PROFISSÃO DE FÉ NA LAVA JATO"
E, como chave de ouro, Lula fez uma comovente profissão de fé na Lava Jato.
“Tem gente que acha que eu sou contra a Lava Jato. Pelo contrário, eu quero que a Lava Jato vá fundo pra ver se acaba com a corrupção.”
Não é difícil questionar a sinceridade dessa profissão de fé. O próprio Lula disse em outras oportunidades que existe uma operação para supostamente destruir sua herança política e a imagem que ele tem entre os mais pobres supostamente beneficiados pelos governos do PT.
Essa operação – segundo Lula em outros pronunciamentos e de acordo com a direção do próprio PT – seria comandada por parte da mídia, pelos rentistas (sic) e pelo Judiciário.
De qualquer modo, Lula é mestre no plano de usar o ataque como instrumento de defesa.
O fanatismo emocional de seus adeptos é tão irracional que um consenso em torno dessa verdade será alcançado apenas daqui a algumas gerações. E isso se elas tiverem a sorte de se instruírem por meio de historiados competentes e apartidários.
Foto: Ricardo Stuckert/Agência Brasil