Apostas: velhos problemas em busca de novas soluções
“A repressão dos jogos de azar é um imperativo da consciência universal". Exposição de Motivos do DL 9215\1946
Em matéria publicada na imprensa, existe grande preocupação de muitas entidades setoriais com os valores vultosos que estão sendo desviados do consumo pela “explosão” das apostas, especialmente ligadas ao futebol. Igual preocupação foi manifestada pela Febraban, mostrando outra consequência dessa situação: o aumento do endividamento das famílias, com reflexos sobre a inadimplência.
Psiquiatras e clinicas especializadas acusam aumento significativo dos casos de “ludopatia”, isto é, viciados em apostas, com sérias consequências sobre a saúde, especialmente crises de ansiedade e até depressão - inclusive de 'familiares do vício.'
Esse problema das apostas é muito antigo, sendo sido discutido no livro “Código dos Homens Honestos”, escrito por Balzac e se referindo à essa questão na França em 1825, como se constata dos trechos abaixo.
Referindo-se ao tema, critica com veemência, especialmente, as “casas de jogo, nas quais nunca alguém ganhou nessas casas infames... e a mais funesta das paixões traz com ela a ruína total daquele que é por ela dominado. Há dez anos, em cada sessão legislativa, vozes enérgicas protestam contra a imoralidade destas rendas... um ministério que se arma em defesa da religião, da moral, que faz leis contra os sacrilégios e desce a saia das bailarinas da ópera, deveria ouvir os gritos dos infelizes que se perderam nas casas de jogo, e a voz patriótica dos que querem pôr termo a um escândalo que desonra as nações”.
No Brasil, o problema é também muito antigo, e foi objeto de legislação através do Decreto Lei 9.215, de 30 de abril de 1.946 baixado pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, que “Proíbe a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional." Vale a pena conhecer os argumentos que justificaram esse decreto-lei, como consta em sua Exposição de Motivos:
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e considerando que:
- repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal; a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a esse fim; a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e a exploração de jogos de azar; das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes; as licenças e concessões para a prática e exploração de jogos de azar na Capital Federal e nas estâncias hidroterápicas, balneárias ou climáticas foram dadas a título precário, podendo ser cassadas a qualquer momento:
DECRETA:
Art. 1º Fica restaurada em todo o território nacional a vigência do artigo 50 e seus parágrafos da Lei das Contravenvenções Penais (Decreto-lei nº 3.688, de 2 de Outubro de 1941).
Interessante notar que havia restrições ao jogo no período anterior, que eram enquadradas como infrações de menor potencial ofensivo, e não se enquadravam como crime. Essas restrições estavam suspensas por legislação posterior, que autorizou casas de jogo. Com o Decreto Lei, foram restabelecidas as restrições, e que foram canceladas pelo DL a partir daquela data. Assim, muitos cassinos e outros locais onde se praticava o jogo foram fechados ou tiveram que se adaptar.
Esse é um tema que está de volta na ordem do dia no Brasil. Sem entrar no mérito do debate sobre o jogo, que é assunto muito antigo, começou com a proibição dos cassinos e se estendeu depois ao popular “jogo do bicho”, o objetivo aqui é mostrar que assuntos que parecem novos já foram discutidos em 1825, data do livro de Balzac.
Quando se deu a proibição do jogo do bicho, que passou a ser considerado contravenção penal, o argumento era que havia contradição entre essa medida, e a exploração pelo governo da Loteria Federal. O argumento a favor dessa distinção era o de que, como a loteria era pública, o governo poderia controlar melhor seu funcionamento e o destino dos recursos arrecadados.
Como o jogo do bicho era muito popular, continuou funcionando na clandestinidade (aparente, pois exigia divulgação dos resultados). Interessante que se considerava absolutamente seguro apostar no bicho, recebendo um papelzinho sem timbre ou qualquer identificação, pois havia um “sistema”, a organização informal dos “bicheiros”, que controlavam as bancas do jogo do bicho e que se tornaram figuras populares, como patronos das Escolas de Samba - o que lhes assegurava notoriedade e uma certa “respeitabilidade”, embora o jogo continuasse na clandestinidade, ocasionando muita corrupção.
Com o advento da Loteria Esportiva, que associava duas paixões nacionais, o jogo e o futebol, houve grande perda da atratividade e da lucratividade do jogo do bicho, que se acentuou com o surgimento de diversas modalidades de loterias. E que, segundo alguns estudos, já arrecadam quantias bastante significativas de recursos do mercado consumidor.
Apesar disso, o jogo do bicho continua a existir, mas com volumes bem menores e com tendência decrescente. Antes, as pessoas tinham que sair para jogar, qualquer que fosse a modalidade do jogo. Agora, o problema das apostas se tornou muito mais grave, não apenas pela atratividade, como pela facilidade para jogar - e a dificuldade de controlar, pois entra nos lares através do celular.
Em 1825, Balzac atacava as casas de jogos o fazia em nome das pessoas e famílias afetadas inclusive em sua saúde, e criticava o Congresso por se preocupar em como arrecadar impostos, e não em controlar o jogo. O presidente Dutra, influenciado por sua esposa, proibiu o jogo em 1946 por razões religiosas e morais.
No Brasil, até agora, nenhuma dessas razões parecem prevalecer, e o tema está sendo tratado no governo pelo Ministério da Fazenda, parecendo indicar que prevalecem as razões tributárias. A legislação que entrará em vigor em 2025; no entanto, contempla algumas normas com vistas a proteger a sociedade, mas não revelam preocupação com a urgência de medidas para evitar que uma parcela maior da população se torne viciada no jogo, com todas as consequências econômicas de saúde e familiares.
O Ministério da Saúde informa que está esperando a criação de um Comitê Interministerial para se preocupar com o assunto, ignorando a urgência com que o tema deve ser tratado, com restrições voluntárias ou compulsórias das operadoras, ao invés de se preocuparem com restrições à liberdade de opinião.
O assunto é muito grave e urgente. É de se esperar que o governo acorde para essa realidade, pensando mais na população do que na arrecadação. Parece, contudo, que a maior probabilidade é que o objetivo da arrecadação predomine. Alguém quer apostar?
FOTO: Freepik
**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio