Uma receita para seguir: inovação dribla a crise no mercado de calçados
Marcas que investem em design, estratégias criativas no varejo e dão a partida na internacionalização continuam no páreo da competitividade
A indústria calçadista vem crescendo a passos lentos nos últimos anos. O ritmo de produção é menor, e os itens mais explorados pelo mercado são os de menor preço. A expectativa para 2015 não é das mais favoráveis – os prognósticos feitos com base nos débeis números do ano passado desenham um cenário preocupante para o varejo do setor ao longo deste ano
Apesar do baixo otimismo do setor, dados do IBGE mostram que, de janeiro a novembro de 2014, apesar da queda de 0,7% na produção e de 8% no nível de emprego, o varejo de calçados faturou 4% mais do que em igual período do ano anterior.
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Essa estatística positiva do varejo resulta de um movimento que já se observa há algum tempo: marcas que investem em inovação, produtos de maior valor agregado, estratégias diferenciadas e inbternacionalização são as que seguem competindo com vitalidade no mercado.
Como exemplos, estão a Jorge Bischoff, de sapatos e acessórios de luxo. Ou a Piccadilly, especialista em calçados femininos há quase 60 anos. Há ainda a Pimpolho, de calçados para crianças de zero a três que ampliou o portfólio com itens de vestuário e puericultura.
Ao apresentarem novidades na Couromoda 2015, encontro de negócios do setor realizado em janeiro, na capital paulista, as três marcas demonstram um empenho adicional –a ponto de crescer ao ritmo de dois dígitos.
Marcelo Vilin, diretor do Instituto de Estudos em Marketing Industrial (IEMI), que produz o relatório setorial “Brasil Calçados”, afirma que inovação e internacionalização das marcas hoje são privilégio das grandes fabricantes, com seus modelos de negócios híbridos e elementos multi – “multisuprimento”, “multimarca” e “multicanal”.
“Mas também há as médias e pequenas que buscam individualidade e identidade para tornar a marca única e treinar seu público-alvo. Assim, conseguem se manter competitivas”, diz.
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Especialista em calçados e acessórios com investimento em design, a gaúcha Jorge Bischoff – batizada com o nome de seu criador – pretende seguir à risca a missão de levar “sapatos de luxo para o mundo”. “O design é um excelente negócio para alimentar a alma da consumidora", afirma Bischoff. "Por isso aqui não tem coleção outono-inverno ou primavera-verão, nem temporadas de lançamentos. Tem 'dia' de coleção nova.”
A produção exclusiva do Bischoff Creative Group,que hoje inclui sapatos bolsas e acessórios masculinos e femininos, está sediada em Igrejinha (RS). De lá saíram 1,5 milhão de pares no ano passado – inclusive da marca mais jovem do grupo, a Loucos & Santos, de menor valor agregado, mas destinada, segundo o empresário, a um público de "vanguarda".
A primeira loja em Cuba, no sofisticado balneário de Varadero (140 km de Havana), tem abertura prevista para o primeiro semestre de 2015. Bischoff está de olho na reabertura das relações comerciais dos Estados Unidos com o país caribenho, após 52 anos de embargo. “Entendemos que os Estados Unidos poderiam reabrir as relações a qualquer momento. Chegou a hora.”
A marca completa 11 anos em maio e, há seis se vale das franquias para ampliar seu alcance no mercado brasileiro e se internacionalizar. No início, as grandes vitrines foram lojas conceito exclusivas: primeiro em Gramado (RS), depois no shopping Iguatemi de Porto Alegre (RS). Mais tarde, na Oscar Freire, na capital paulista.
Com mais de 20 anos trabalhando como designer para a indústria calçadista, Bischoff decidiu lançar o projeto de uma marca com sua assinatura. “A ideia foi trabalhar sapatos bem elaborados, lindos e bem construídos. Mas também ‘usáveis’, para atender a mulher real”, diz.
Além de 55 revendas exclusivas no país, hoje o empresário tem outras duas lojas licenciadas em Montevidéu, no Uruguai, e mais outras duas em Barbados, no Caribe. A marca também conta com uma butique online e já vende para 60 países, com destaque para a Rússia, França, Colômbia, Peru e Arábia Saudita.
Depois de faturar R$ 93 milhões em 2014 e crescer 18%, a meta do Bischoff é dobrar a produção e crescer 24% em 2015. E entrar no cobiçado mercado americano com a loja de Cuba.
TECNOLOGIA EM PRIMEIRO LUGAR
Outra gaúcha bastante popular é a Piccadilly. Com quase seis décadas de atividades, a marca procura se renovar em estratégias de varejo, internacionalização e na fabricação de produtos – agora baseados no conceito “Fashion Comfort”. A empresa coleciona prêmios de inovação, e ostenta o certificado de qualidade da inglesa Satra Technology Centre, líder em tecnologia de calçados.
Recentemente, a Piccadilly investiu R$ 100 milhões em modernização do maquinário para melhorar o design, o acabamento e as tecnologias de conforto Tech Mix – principal aposta da marca para atender às consumidoras nacionais e internacionais. A empresa também foi a primeira a investir em experimentos de institutos de pesquisa para a coleção Primavera-Verão 2015, de acordo coma diretora comercial Ana Clara Grings.
Mesmo sem franquias, a marca é vendida em mais de 15 mil pontos de vendas espalhados em 90 países, e 31 lojas exclusivas em outros 10. Sua loja-conceito mais recente foi inaugurada no fim de 2014, na Guatemala. Hoje, a companhia exporta 25% da sua produção, e as vendas externas representam 20% do total.
A atenção da Piccadilly com a tecnologia e o conforto dos pés femininos – que representam mais de 57% do setor, segundo a Abicalçados – atraiu parceiros exclusivos não só no exterior, mas também dentro do Brasil. Parceiros esses que optaram, por conta própria, por abrir lojas que comercializam exclusivamente os calçados da marca.
O consultor Humberto Ribeiro abriu, em 2014, a sua segunda unidade da loja-conceito YouBy Piccadilly, no shopping Tamboré, em Barueri. A primeira, em Moema, na zona sul paulistana, inaugurada na metade do ano passado, já retornou 50% do valor investido.
A ideia, segundo ele, foi criar um modelo de gestão que desafiasse as regras de varejo. Ribeiro quis explorar o potencial desta marca que leva, em média, 500 modelos novos ao mercado a cada nova coleção. Mas destes, apenas dez são efetivamente visualizados pela clientela em uma loja multimarca convencional.
“Isso gera frustração na hora de fidelizar a consumidora. Com a YouBy, temos boa variedade de itens em quantidade mínima. Uma loja com decoração, conceito e visual merchandising em destaque, fazem com que ela tenha uma experiência muito íntima com o produto”, afirma.
Em 2014, a Piccadilly obteve R$ 410 milhões em faturamento. Desde 2010, quando foi implantado o projeto “Ambição”, as receitas subiram 70%, segundo Ana Clara. A perspectiva é de dobrar o tamanho da empresa até o fim deste ano.
“Mas, é uma expectativa bastante flexível e variável aos momentos do mercado. Por isso a nossa estratégia será ‘um passo de cada vez’”, afirma a diretora.
OPORTUNIDADE + VISÃO DE MARCA
Ampliar o portfólio com artigos de vestuário e puericultura leve, investir em uma nova linha de produção para desenvolver calçados de plástico injetável e lançar, ainda neste mês, um aplicativo para smartphones com dicas do universo infantil para o dia a dia das mães.
Essas são algumas das ações estratégicas da Pimpolho, fabricante capixaba de calçados infantis, para se manter competitiva no disputado mercado de produtos para crianças de zero a três anos. Comandada pela terceira geração da família Brito, a empresa procura atrair seu público-alvo em várias frentes.
No varejo, os corners ilustrados com urso mascote da marca nos pontos de venda ajudam a expor novidades que vão além dos calçados, como roupinhas, chupetas e mamadeiras. A variedade de produtos ofertados também é hoje a linha mestra de outras calçadistas, como a Arezzo, a Grendene e a Alpargatas, que recentemente decidiram diversificar o portfólio com itens de vestuário e até móveis plásticos.
Ricardo Brito, diretor comercial da Pimpolho, afirma que a migração se deu por oportunidade e para a ampliação da visibilidade da marca. Nada de perda de espaço no mercado. “Produzimos e vendemos quatro milhões de acessórios em 2014”, afirma.
Outro grande investimento, de R$ 700 mil, impulsionou a linha Colorê. Na esteira do crescimento das vendas de calçados plásticos no estilo das Melissas, da Grendene, a Pimpolho desenvolveu uma linha de galochas infantis para entrar em canais de vendas que não fossem apenas direcionados a bebês e crianças. “Hoje estamos em grandes magazines, como a C&A, por exemplo.”
Em 2014, a empresa faturou mais de R$ 100 milhões em 2014, muito fortalecida pela linha Colorê e pelos itens de puericultura. “Em novembro, vendemos 4% a mais que em igual mês de 2013.” Hoje, a Pimpolho, que está presente em 40 países, aposta no mercado americano e quer se fortalecer na América do Sul e do Oriente Médio em 2015.
“Nossa área de P&D (pesquisa e desenvolvimento) está preparando muitas novidades a partir de maio. Crescemos 21% em 2014 e, com tudo isso, esperamos repetir a marca este ano.”
MUDANÇA DE CENÁRIO
Os negócios vão bem para as três empresas, mas a indústria calçadista evidencia outras particularidades. O 6º Relatório Setorial “Brasil Calçados 2014”, do IEMI, mostra que o setor também cresceu 4% em faturamento em 2013.
No período, foram produzidos 900 milhões de pares, puxados basicamente por modelos de plástico injetável, como sandálias de praia. “Essa condição se repete há anos. Sozinho, o segmento (que responde por 56,5% da produção nacional) contribuiu com quase 30 milhões de pares”, diz Heitor Klein, presidente da Abicalçados (associação do setor).
Ou seja, são produtos de marcas como Havaianas, da Alpargatas, ou Melissa, da Grendene, que escapam da pressão dos importados. Já o mercado de tênis e sapatênis, por exemplo, sofre em função dos materiais e dos mais de 40 componentes necessários para a produção de um calçado. “A vantagem dos asiáticos é muito alta nesse tipo de produto” diz Vilin, do IEMI.
As linhas de calçados plásticos são os produtos com maior valor agregado – mesmo quando considerados o alto volume e o preço médio menor. "São os calçados é que têm encontrado mercado no exterior pela inovação da produção e pelo estilo brasileiro no design”, afirma.
Na década passada, a indústria calçadista sofreu com a valorização do real frente ao dólar e com a concorrência chinesa (em especial as exportadoras). O resultado desta conjunção de fatores foi a perda de 85 mil postos de trabalhos nas regiões produtoras, como Rio Grande do Sul, São Paulo e Ceará (dados do Ministério do Trabalho e Emprego). Na época, a situação ficou tão complicada que o governo chegou a conceder duas parcelas extras de seguro-desemprego aos desligados.
Para proteger o setor, a Abicalçados trabalhou junto ao Ministério do Desenvolvimento, Comércio e Indústria (MDIC) para aplicação de direitos antidumping (prática ilegal de comércio de colocar no mercado produtos abaixo do preço custo para eliminar a concorrência) nas importações de calçados da China.
A entidade quer estender o processo que passa por revisão no MDIC até março próximo, por mais cinco anos. Também desenvolveu, em parceria com a Apex-Brasil, o programa de promoção às exportações Brazilian Footwear, que tem quase 15 anos.
Em 2014, porém, o cenário voltou a se deteriorar. Klein, da Abicalçados, afirma que a queda nos indicadores – da produção até o varejo – afetaram o setor. “A Copa do Mundo se tornou uma espécie de concorrente, pois alavancou negócios da linha branca e serviços. Já as eleições geraram insegurança no mercado”, afirma.
O consumo também não está mais “puxando” há mais de dois anos, lembra Vilin. Por outro lado, a importação cresce num ritmo menor e afeta a todos, mas sem as pressões de antes. “Conseguimos agora ser mais exportadores que importadores”, diz. As marcas citadas acima dão uma ideia disso.
Para 2015, Klein espera uma queda contínua no varejo calçadista, provocada pelo aumento da inflação e o endividamento das famílias brasileiras. “Mas no mercado externo, esperamos melhora da competitividade com o dólar mais valorizado e a recuperação dos nossos principais mercados. Exceto a Argentina, que já é um quadro consolidado.”