Rei do Filet, 110 anos, resiste fatiando o tempo e com o cardápio intacto

Aberto em 1914, restaurante mudou-se em 1929 para a praça Júlio Mesquita, no Centro, e resistiu à pandemia

Vitor Nuzzi - DC News
20/Jan/2025
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Rei do Filet, 110 anos, resiste fatiando o tempo e com o cardápio intacto

Em seus 110 anos de existência, o Rei do Filet só fez duas concessões. A primeira na própria mudança de nome, a pedido da clientela. Até 2008, o local era conhecido como Filet do Moraes, referência a um chapeiro dos tempos iniciais. A segunda foi no prato que deu fama à casa, que só servia a tradicional peça de 500 gramas e agora oferece as versões médio (250 gramas) e executivo (130 gramas). Sempre ao alho e óleo. Alguns fregueses chegavam sozinhos para almoçar e queriam pratos mais econômicos – em tamanho e preço.

No cardápio o Rei do Filet é basicamente o mesmo. Fora dele, houve pequenas mudanças. Agora, as cadeiras têm estofamento, e uma pequena rampa substituiu a escada, no acesso à parte dos fundos. Também não existe mais o grande balcão que ladeava as mesas. E o piso não é mais de lajotinhas. Mas os azulejos são os mesmos nas paredes, forradas de quadros que contam a história do restaurante, que por pouco não abreviou sua existência centenária.

Foi durante a pandemia. “Quase nos quebrou”, disse o gerente, Roberto Carlos Martins, 59 anos, há 30 na casa, onde começou como cumin e garçom. “Foi por pouco”, afirmou, aproximando o indicador e o polegar direitos, para enfatizar o tamanho da crise. Naquele período, serviço era só na base do iFood. Ficaram apenas seis funcionários – três a cada 15 dias. Eram 65 quando havia um segundo restaurante, filial, na alameda Santos. Este não foi possível manter, por causa do valor do aluguel (R$ 40 mil). Ficou o pioneiro, na praça Júlio de Mesquita, entre a avenida São Joao e a alameda Barão de Limeira, aos pés do Palacete Lugano, construído em dois momentos na primeira metade do século passado. O Rei do Filet está lá desde 1929. Havia sido aberto em 1914, ainda com o nome Esplanadinha, na rua Conselheiro Crispiniano, onde o “filé alto” de Moraes começou a ser comentado e procurado.

O rei sobreviveu. Tem hoje 23 funcionários, mas não funciona mais à noite – agora, abre de segunda a sexta das 11h às 16h, e aos sábados e domingos até as 17h. Nos dias bons, conta Martins, são vendidos de 70 a 80 filés. Os atuais chefs, Gildásio Barbosa e Vanderlei Macedo, têm 20 e 15 anos de cozinha, respectivamente. E as histórias estão todas lá. Por aquelas mesas passaram políticos (Assis Chateaubriand, Fernando Henrique Cardoso), jogadores (como Romário) e muitos artistas (Cauby Peixoto, Lady Francisco, Sérgio Reis). Uma dessas histórias, talvez a mais famosa, está entre o fato e a lenda. Teria sido no Rei do Filet, enquanto devorava um filé, que Adoniran Barbosa compôs sua música mais famosa, Trem das Onze. “O pessoal das antigas diz que é verdade. Vinha sempre, com uma caixinha de fósforo”, afirmou o gerente.

Não existe comprovação documental, mas o jornalista Celso de Campos Jr., autor de volumosa biografia sobre o compositor (publicada em 2003), conta que Adoniran estava em fase de seca criativa quando encontrou casualmente Arnaldo Rosa, do conjunto Demônios da Garoa, e que também andava em maré baixa. O ano era 1964. A despeito de filé, juntou-se à fome com a vontade de comer. Adoniran contou que tinha um novo samba. Arnaldo nem esperou: já marcou encontro com a turma toda para mostrar a música, no apartamento de um deles (Toninho), lugar que servia de local de ensaio. E que ficava na rua… Ou melhor, na praça Júlio Mesquita. Justamente a do Rei do Filet.

Pelo sim, pelo não, a lenda ficou. Ou fato. Curiosamente, alguns deles não gostaram do que ouviram pela primeira vez. Mas o resto é história, sem quais quais quais. E Trem das Onze ainda ganharia o Concurso Oficial de Músicas Carnavalescas do Quarto Centenário do Rio de Janeiro. Assim, um despretensioso samba paulistano ganhou o carnaval justamente em território carioca. Com o dinheiro do prêmio, Adoniran e dona Matilde construíram sua casinha.

Roberto Martins olha discretamente o relógio. Faltam 25 minutos para as 11h. Daqui a pouco estará na hora de abrir a casa. Lá no fundo, o funcionário mais antigo, José Oscar Gonçalves Macedo, 70 anos, que completará 51 anos de serviço em março, faz um pequeno conserto. Colegas brincam e dizem que ele faz parte do patrimônio da casa. Ainda rapazinho, Macedo trabalhava com tratores em Goiás quando veio visitar a irmã em São Paulo. Não conseguiu embarcar de volta porque teve que prestar serviço militar – e perdeu o emprego. O cunhado trabalhava no então Filet do Moraes e o indicou. O período de experiência passou, Oscar Macedo ficou.

Ainda trabalhou durante sete anos com ‘seu’ Manoel (Manoel Pereira Vidal), um dos portugueses fundadores do restaurante (o outro foi Salvador Domingos). O perfil mudou, contam os gerentes. Segundo eles, hoje a casa é bastante procurada por jovens – entre eles, sobrinhos, filhos, netos de antigos fregueses. Também aparecem por lá turistas e funcionários de bancos e lojas próximas. Esses vêm menos, até porque o preço do filé não é para o dia a dia. Diferentemente de quando o pessoal da boemia ficava até o dia amanhecer. Mas certas coisas não mudam, como a carne, sempre cortada pelos garçons com colheres. Como diz o gerente Roberto Martins, “a gente tenta manter o jeito de trabalhar.”

 

IMAGEM: divulgação

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