Por que a nova classe média foi expulsa do paraíso
Entre 2006 e 20012, 3,3 milhões de famílias subiram para a classe C. Mas com a recessão do governo Dilma, 4,4 milhões não resistiram e foram rebaixadas

O castelo de cartas era frágil e, com a recessão (2015-2016), a chamada “nova classe média” simplesmente deixou de existir. Os cidadãos que a compunham caíram para a faixa de renda da qual havia saído.
Os números da Consultoria Tendências, extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), revertem o retrato idílico que os 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores construíram para consumo ideológico.
Em resumo, entre 2006 e 2012, aí incluído o biênio de tropeço da economia mundial (2007-2008), 3,27 milhões de famílias brasileiras subiram das classes D e E e passaram a fazer parte da classe C.
Mas o período recessivo que se seguiu, no governo Dilma Rousseff, 4,33 milhões de famílias deixaram a classe C e voltaram para a base da pirâmide de renda.
Em termos técnicos, a classe C é hoje menor que em 2015. Ela perdeu a nova classe média (expressão concebida por Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da FGV) e ainda levou de roldão pouco mais de 1 milhão de famílias da classe média tradicional.
O curioso nessa narrativa de ascensão e queda é que nada disso ocorreu em razão das políticas sociais do governo.
O mantra petista levava a crer que o relativo enriquecimento dos mais pobres era o resultado do Bolsa Família, que hoje paga de R$77,00 a R$154,00 para cada membro cadastrado de 13,9 milhões de domicílios.
A LÓGICA DO ESFORÇO INDIVIDUAL
A verdade é bem mais simples. Os mais pobres subiram para a classe média em razão do acesso ao mercado de trabalho. Depois que a economia se estabilizou com o Plano Real (1994), o país entrou em lento processo de formalização da mão-de-obra.
Em 2003, início do governo Lula, eram emitidas 700 mil carteiras de trabalho. A emissão anual passou para quase 2 milhões.
O assalariado foi buscar qualificação (cursos noturnos) e conseguiu um melhor emprego, num período em que a economia cresceu com a entrada inédita de recursos, em razão do aumento das exportações para a China.
Por que. então, se criou a confusão? Basicamente porque Lula e Dilma acreditavam que a ascensão do pobre só poderia ser o resultado do assistencialismo oficial, com foco no que é coletivo, e não no esforço ou no empreendedorismo individual.
Prova disso é a absurda controvérsia criada por Dilma às vésperas da votação do impeachment pela Câmara dos Deputados (abril de 2016). Ela, ainda presidente, acusou “os golpistas” e Michel Temer de quererem suprimir o Bolsa Família para tirar o pão da boca dos mais pobres.
Há em paralelo uma outra confusão, nem sempre criada por malícia. Trata-se de toda a discussão em torno da diminuição da pobreza.
Quando do Plano Real, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) verificou que nas seis regiões metropolitanas, em que o IBGE fazia na época pesquisas sobre o emprego, a pobreza havia caído de 38% para 28%. Ou de 14 milhões para 10 milhões de pobres nessas cidades.
Mas já na época inexistia, como hoje, uma definição legal do que venha a ser a pobreza. O IBGE, uma instituição cautelosa, define apenas como classes D e E aquelas em que as famílias têm um rendimento mensal inferior a R$ 2.166,00.
A Fundação Getúlio Vargas (FGV) é mais elástica. Para ela, é da classe média a família cuja renda mensal é superior a R$ 1.064,00. Mas o número, em que pesem argumentos técnicos da instituição que o criou, acabou virando gambiarra política no final do segundo governo Lula e no primeiro de Dilma.
Mesmo pessoas com sólida formação acadêmica levavam pouco a sério o fato de essa quantia, equivalente a R$ 35,46 por dia, representar um potencial de consumo familiar próprio a uma verdadeira classe média.
Ou seja, o governo foi pouco convincente na quantificação de um processo que, na prática, a economia sabia estar ocorrendo, tanto que a indústria, os serviços e o varejo sentiram a diferença.
AFINAL, O QUE É A POBREZA?
A ausência de parâmetros levou, a partir de 2003, a certos malabarismos estatísticos por parte de governos interessados em provar de qualquer maneira que a pobreza estava em seus estertores.
Dizia-se, por exemplo, que 33 milhões de pessoas haviam saído do estado de pobreza. Acontece que, na falta de um critério interno, o Ministério da Promoção Social adotava a regra do Banco Mundial e da ONU, que definiam a pobreza extrema como a renda per capita inferior a US$ 1,25 por dia.
Por esse critério, a extrema pobreza caiu no Brasil de 8,1% para 3,1%, entre 2001 e 2013.
Mas é uma faca de dois gumes. Aplicado agora, o critério do Banco Mundial e da ONU, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) diz que a extrema pobreza subiu, entre 2012 e 2013, de 5,4% para 5,9% da população brasileira.
E, um lembrete. Durante a campanha presidencial de 2014, a então candidata à reeleição foi acusada de ter calado por três meses o Ipea, para que o instituto não divulgasse pesquisa com a mesmíssima conclusão. Seria muito ruim para ela, em termos eleitorais.
Para a governante, interessavam informações como a divulgada pelo Portal Brasil, na época aparelhado pelo partido dela, para o qual o Bolsa Família havia tirado 34 milhões de brasileiros da condição de extrema pobreza.
É claro que a pobreza diminuiu no Brasil. É claro que o Bolsa Escola (FHC) e o Bolsa Família (Lula e Dilma) tiveram um papel importante, mas a questão aqui é outra: a ascensão e queda da nova classe média.
Quando em certo domingo de maio de 2016 cerca de 4 milhões de pessoas saíram às ruas na última manifestação pelo impeachment, alguns petistas intelectualmente honestos se perguntavam a razão pela qual essa nova classe média não se opunha ao movimento que defenestraria a presidente.
E eles próprios respondiam o óbvio. Essa parcela ascendente de brasileiros estava conectada ao consumo – eletrodomésticos, planos de saúde, escola secundária particular –e não à política ou questões sociais, campo em que o PT acreditava que poderia levar vantagem.
Pois é essa justamente a variante de uma moral dessa história. Uma variante com desdobramentos dramáticos quando a recessão se evidenciou.
Se não era por causa do governo que esses brasileiros subiram na escala social, era certamente por culpa do governo que voltava a inflação e sumiam os empregos, levando os antigos ascendentes ao movimento de queda.
FOTO: Nilton Fukuda/Estadão Conteúdo