O silêncio dos inocentes - Parte 2

Passados mais de trinta anos, a Constituição “Cidadã” em nada contribuiu para melhorar o cenário da pobreza no Brasil, mas, pelo contrário, a situação continuou a se agravar

Marcel Solimeo
25/Ago/2023
Economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo
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Ao ver dados do mapa da pobreza do IBGE, referentes a 2021, revelando um quadro extremamente grave da situação de uma parcela expressiva da população em situação de pobreza, me lembrei de texto que escrevi a respeito desse tema durante o período de discussão da Constituinte. Esse é o texto escrito em 1988.

“ O SILÊNCIO DOS INOCENTES”

Recente estudo do IPEA-Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada no Ministério do Planejamento, revela que existem no Brasil 15 milhões de crianças e adolescentes que vivem em estado de miséria, o que representa 46,9% da população de indigentes e um quarto da população infanto-juvenil do País.

Tais números estarrecedores não têm provocado qualquer repercussão junto aos meios de divulgação, aos formadores de opinião ou aos políticos. Campanhas contra a fome ou manifestações e Movimentos em favor de menores carentes são altamente meritórias, e absolutamente necessárias no curto prazo.

Não contribuem em nada, contudo, para reverter uma situação absurda e inaceitável para um País que dispõe de território, recursos naturais, tecnologia e recursos humanos para garantir condições mínimas de vida à sua população.

O processo de empobrecimento que o Brasil vem experimentando nos últimos anos revela sua face mais dramática nesses números relativos à infância e à juventude brasileira: 25% dessa população não tem presente e nem terá futuro.

Afora o lado humano dessa tragédia, existem os desdobramentos dessa situação no futuro pois esse grupo de indigentes infanto-juvenis, quando atingir a idade adulta, não terá condições de se inserir no sistema produtivo.

A alta taxa de natalidade existente nesse extrato da população provocará crescimento da indigência entre crianças e jovens fazendo crescer o descompasso entre recursos disponíveis nas mãos do Estado e necessidades mínimas desse contingente populacional.

Existem muitas causas para explicar esse quadro dramático da miséria em geral e, em especial, na população abaixo de 18 anos, entre as quais se destacam o processo de urbanização acelerado e desordenado e a desestruturação familiar.

De cada 10 crianças ou adolescente que vivem em situação de indigência, um pertence a uma família chefiada por mulher, seja em consequência do abandono do lar pelo marido ou, o que é comum entre as mais jovens, por ser mãe solteira.

Não se pode ignorar, contudo, que a maior responsabilidade por essa situação cabe à desorganização do Estado, que deixou de atender suas funções, e ao processo recessivo que provocou queda da renda "per capita" brasileira na última década.

A inflação desenfreada, as políticas anti-inflacionárias e o modelo centralista, estatizante e ineficiente que predominou no Brasil nos últimos anos levou à falência do Estado como agente de prestação de serviços à sociedade.

Como essa camada da população, os 32 milhões de miseráveis, menores e adultos, não tem voz, sua situação não desperta a indignação que seria necessária para se reverter esse quadro degradante.

As discussões sobre a revisão constitucional e as reformas políticas e econômicas, necessárias à erradicação da inflação e a retomada do crescimento, não levam em conta o "silêncio dos inocentes," mas a vociferação dos privilegiados que buscam manter seus privilégios sob a capa do nacionalismo ou de uma ideologia retrógada e superada em todo o mundo.

Cabe àquela parcela da população brasileira que tem voz, embora raramente utilize, e não tem privilégios a defender, lutar para que o Congresso Nacional puna a corrupção, mas também mude as regras que a favorecem e que, simultaneamente, promova as reformas que o País reclama.

A revisão constitucional não é panaceia que vai resolver todos os problemas nacionais, mas pode criar condições para que, com vontade política, determinação e trabalho, o Brasil crie riquezas para poder eliminar a pobreza. (Agência Planalto) “ (Aqui termina o texto de 1988.)

Ao reler, constata-se que passados mais de trinta anos, a Constituição “Cidadã” em nada contribuiu para melhorar o cenário da pobreza no Brasil, mas, pelo contrário, a situação continuou a se agravar.

Essa questão da pobreza, especialmente da infância e adolescência, é preocupante não apenas em relação ao presente, como, sobretudo, para o futuro de toda uma geração, como mostra estudo da UNICEF também recém-publicado.

Esse texto, “ As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil”, apresenta o resumo de um estudo inédito do UNICEF sobre “ as privações que afetam crianças e adolescentes no País e os desafios atuais, que incluem o agravamento da insegurança alimentar e da pobreza extrema, além de a piora da alfabetização e as persistentes desigualdades raciais e regionais. O estudo mostra que mais de 60% da população de até 17 anos vive na pobreza no Brasil.

A pobreza a que esse dado se refere é mais do que privação de renda, “tem a ver também com acesso a direitos básicos, como educação, saneamento, água, alimentação, proteção contra o trabalho infantil, moradia e informação”

Os dados do IBGE de 2021, que considera as linhas de pobreza propostas pelo Banco Mundial, revelam que cerca de 62,5 milhões de pessoas (ou 29,4% da população do país) estavam na pobreza.

Entre estas, 17,9 milhões (ou 8,4% da população) estavam na extrema pobreza. Foram os maiores números e os maiores percentuais de ambos os grupos, desde o início da série, em 2012.

A proporção de pretos e pardos abaixo da linha de pobreza (37,7%) é praticamente o dobro da proporção de brancos (18,6%). O percentual de jovens de 15 a 29 anos pobres (33,2%) é o triplo dos idosos (10,4%).

Ainda em 2021, cerca de 62,8% das pessoas que vivem em domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos estavam abaixo da linha de pobreza.

Esses números mostram que não se pode aceitar a continuidade dessa situação. As políticas sociais adotadas nos últimos anos, apesar de terem sido, e continuarem sendo, importantes, para amenizar as consequências mais graves da pobreza e da miséria, visam mais a atacar os efeitos, mas não conseguem mudar estruturalmente a situação.

Existem muitos estudos sobre como atacar esse problema, que exige foco e atuação integrada dos três níveis de governo. Parece-me, no entanto, que qualquer programa para mudar essa situação, tem que começar a atuar na primeira infância, desde a mais tenra idade, cuidando da alimentação, da saúde e, inclusive, procurar compensar, quando for o caso, a falta do ambiente familiar necessário ao desenvolvimento da criança.

O desafio é enorme e exige a participação de todos os segmentos da sociedade. Para isso é preciso que o “silencio dos inocentes” seja compensado pela voz de todos os que gozam de algum privilégio, não de benesses públicas, mas pelo fato de terem tido, e aproveitado, oportunidades.

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