O 'prédio azul' no caminho para a escola
O que as crianças têm a nos ensinar sobre a cidade e o desenvolvimento urbano de São Paulo
Todo dia levo os meus filhos à escolinha a pé e de lá vou para o trabalho. O caminho é relativamente curto, cerca de três ou quatro quarteirões – e digo três ou quatro porque nem sempre fazemos o mesmo percurso.
Pelo menos uma vez por semana, meu filho mais velho, de quatro anos, pede para irmos pelo caminho mais longo, o do “prédio azul”. É curioso, pois o prédio tem apenas algumas poucas partes pintadas de azul.
Contudo, ante a monotonia predominante nas fachadas de tantos edifícios genéricos, quase sempre pintadas com pequenas (e tristes) variações de bege, marrom ou cinza, aquele leve toque de azul parece ter sido mais do que suficiente para que o prédio se tornasse uma referência no bairro para ele.
Pode ter colaborado também o fato de que, no térreo desse edifício – ao contrário da grande maioria dos prédios do bairro –, há duas pequenas lojas: uma sorveteria e um mercadinho. “Sorvete”, repete o mais novo, de dois anos – e ainda no início do desenvolvimento da fala –, sempre que passamos por ali, enquanto o mais velho aponta para o anúncio de um chocolate que certa vez ganhou na festa de aniversário de um coleguinha, “lembra, papai?”.
Nesse mesmo trajeto para a escola, passamos por uma pizzaria com astronautas desenhados na fachada. Ali, o mais novo sempre diz o nome dele enquanto aponta para a figura de um pequeno astronauta comendo pizza ao lado de um cachorrinho; já o mais velho sugere um passeio com os amigos: “Vamos chamar meus amigos e vir aqui um dia depois da escola, papai? Eu vou comer um pedaço de pizza marguerita e um de M&M”.
O trajeto, felizmente, é bastante arborizado, conforme é possível notar pelas imagens. O mais velho gosta de identificar todas as “patas de vaca”, árvore bastante presente no bairro, inclusive do mesmo tipo da que temos em frente de casa.
Se uma delas está florida, com algum dos galhos mais baixo, ele me pede para colher uma flor e guardá-la na mochila, para mais tarde entregá-la à mamãe. Se há abelhas ou outros insetos rondando as flores, ele relembra a história que certa vez contei sobre a polinização.
Nem mesmo a presença de muitas árvores, porém, o deixa esquecer das que tombaram em algum temporal recente e ainda não foram replantadas – algumas delas, inclusive, já mencionei em artigo no Diário do Comércio. Especialmente nos dias mais ensolarados, a falta de sombra em alguns trechos é notada por ele, que logo sugere que “uma árvore poderia ser plantada aqui, né, papai?”.
Em outro dos trajetos para a escola – o caminho “pela rua de cima” –, uma simples rampa em frente a uma loja de bolos se transforma em brincadeira – e o provável atraso de alguns minutos no trabalho acaba compensado pelas gargalhadas dos dois após cada descida correndo pela rampa.
Também os parklets vazios – logo pela manhã ainda sem as mesas e cadeiras – costumam servir de parada para brincadeiras, desvio de rota ou simples motivo de distração (imaginem, então, se houvesse mais parkets com mobiliário para a primeira infância, conforme sugeri em artigo no Diário do Comércio?!).
Os paraciclos amarelos na rua da escola se transformam em túneis; as raízes de uma árvore viram obstáculos a serem superados em uma desafiadora escalada; o trator amarelo de uma obra ou os cones alaranjados espalhados pela calçada os transportam para uma aventura com a Patrulha Canina. “Foi o Chase que colocou os cones aqui, né, papai?”, diz o mais velho, enquanto o mais novo repete “Rubble” apontando para o trator.
No caminho para a escola, eles também dão bom dia para o jardineiro que cuida do canteiro do prédio vizinho à nossa casa, para a vizinha que lava a calçada “cheia de cocô de cachorro”, cumprimentam o “moço que faz a barba do papai” e o “moço que vendeu as coisas para o conserto do telhado de casa”. Todos nos conhecem, ainda que alguns apenas “de vista”, o que, de qualquer forma, aumenta a sensação de segurança ao longo do percurso.
Não faço coro aos que acreditam que as crianças de hoje sejam mais inteligentes do que as do passado. Diria que não são nem mais, nem menos inteligentes; continuam sendo apenas crianças, espontâneas, curiosas, imaginativas, descobrindo o mundo ao seu redor.
E são exatamente essa espontaneidade, essa curiosidade e essa imaginatividade, as quais tendemos a perder com a idade, que são capazes de fazer da cidade uma verdadeira aventura – e não apenas o lugar onde dormimos, consumimos e trabalhamos, o não lugar por onde simplesmente passamos para chegar a algum destino.
Recuperar e valorizar esse olhar infantil é sem dúvida uma forma de transformar nossos bairros em lugares mais agradáveis, vibrantes e interessantes. Dessa breve caminhada até a escola, por exemplo, é possível tirar algumas importantes lições sobre o desenvolvimento urbano da cidade:
- Mais cores nas fachadas das casas e dos prédios trazem alegria e ajudam a criar referências para quem caminha pela cidade;
- Grafites deixam os muros mais coloridos e alegres, além de transformarem a cidade em uma espécie de livro aberto, cheio de histórias e reflexões a serem exploradas;
- Lojas no térreo dos edifícios e o comércio local, de maneira geral, não apenas trazem mais movimento para as calçadas, como geram estímulos positivos para quem caminha e incentivam a socialização de quem vive no bairro;
- Fruição pública e pequenas intervenções como os parklets criam novas áreas de permanência e podem tornar as calçadas muito mais vivas, agradáveis e interessantes para os pedestres;
- Árvores e jardins trazem sombra e cor, valorizam a paisagem urbana e tornam as caminhadas pelo bairro muito mais agradáveis;
- Por fim, andar a pé fortalece os laços entre quem mora e trabalha no bairro, aumentando a sensação de segurança de todos que circulam por ali.
Uma breve caminhada pelo bairro com as crianças, afinal, pode ser uma valiosa aula de urbanismo e urbanidade!
**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio
IMAGEM DE ABERTURA: Prefeitura de SP