O engano das boas intenções na tributação dos dividendos

‘O problema da tributação dos dividendos talvez possa ser encaminhado de outra forma, distinguindo as sociedades de pessoas das sociedades de capital’

Fernando Facury Scaff
14/Nov/2024
Advogado e professor titular de Direito Financeiro da USP
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O engano das boas intenções na tributação dos dividendos

É clássica a frase “para problemas complexos, existe sempre uma solução simples, e errada”, o que é agravado quando esta é apresentada sob a forma de estudo científico.

Alertado pelo elogioso texto de Samuel Pessôa na Folha de S.Paulo, li a nota técnica de Sérgio Gobetti intitulada Progressividade tributária: diagnóstico para uma proposta de reforma e constatei algumas imprecisões, mesmo sabendo da diferença entre o olhar de um economista e o olhar jurídico sobre o mesmo fato.

A nota técnica acerta ao analisar o problema da regressividade da carga tributária brasileira, afastando de seu foco a tributação do consumo (EC 132), pois a tal incidência não se aplica a regra da progressividade, e observa a tributação da renda, à qual esta regra é aplicável. O problema está bem exposto no texto, com dados contundentes. O problema se encontra na trajetória apresentada e nas soluções que aponta.

A análise parte do pressuposto, que até pode ser verídico para os economistas, de que o custo tributário sobre as empresas pode ou não ser arcado pelos acionistas, a depender do modelo de tributação. Isso se revela no texto, em especial no seguinte trecho “definitivamente não é apropriado supor que todo IRPJ/CSLL pagos pelas empresas recaiam sobre os acionistas e proprietários”. A partir daí o texto ataca os sistemas tributários do Simples e do Lucro Presumido. Centrarei atenção apenas nesse ponto, embora o texto seja rico para debate em outros aspectos.

Em primeiro lugar, é inegável que havendo lucro na empresa, toda a carga tributária é transferida para o adquirente de bens e serviços por ela produzidos. Logo, quem paga qualquer tributo direto (IRPJ e CSL) ou indireto (ICMS, PIS, Cofins etc.) é sempre o consumidor dos bens e serviços produzidos pela empresa, e, havendo lucro, implica em afirmar que toda a carga tributária foi paga – caso contrário, não terá havido lucro. E, por conseguinte, não existirão dividendos a serem distribuídos.

Deve-se considerar que os regimes fiscais do Simples e do Lucro Presumido tributam a renda mesmo que ela não ocorra, pois sequer é contabilmente apurada, mas pressuposta. Privilegia-se a simplicidade e a praticabilidade, ao invés do rigor contábil de apuração da renda, como ocorre no sistema de Lucro Real. Nestes regimes fiscais, o IRPJ/CSL é pago sem que se apure a existência de lucro efetivo. Sendo assim, é duvidoso afirmar que “estimativas indicam que as empresas que aderiram aos regimes especiais pagaram apenas 25% do imposto teórico que teriam de pagar caso estivessem submetidas ao regime de Lucro Real e sem quaisquer outros benefícios tributários”.

Faltam dados para sustentar esta afirmativa, conforme a própria Receita Federal, o que é reconhecido na nota técnica: “as declarações de IRPF não distinguem por regime de tributação os lucros e dividendos recebidos pelas pessoas físicas. Há apenas uma separação entre dividendos do Simples Nacional e de todos os demais regimes juntos; ou seja, não é possível distinguir Lucro Presumido de Lucro Real, tampouco empresas financeiras de não financeiras”. Os dados não existem porque são irrelevantes para fins de incidência, pois os lucros distribuídos (dividendos) não sofrem incidência tributária, independentemente do regime fiscal à que as empresas estão submetidas.

Quem garante?

A nota segue afirmando que “o fato de uma empresa ser pequena não significa que seus donos tenham baixa capacidade contributiva e sejam merecedores de um tratamento privilegiado na tributação de suas rendas”. Ocorre que tais regimes fiscais, Simples e Lucro Presumido, existem com regras de limitação sobre sua receita bruta, logo, são empresas que possuem receitas limitadas, e, portanto, são tributadas obedecidos os parâmetros da simplicidade e da praticabilidade. Se os donos dessas empresas possuem ou não capacidade contributiva advinda de outras fontes, é irrelevante para os fins específicos deste ponto sob análise.

Segue-se o fato de que muitas dessas empresas simplesmente não existiriam se esses regimes fiscais não vigorassem. Quem garante que, sob o manto do Lucro Real, várias dessas empresas teriam sido iniciadas ou se manteriam ativas? Ou que teriam lucro efetivo, real? A configuração da economia brasileira seguramente seria outra – ou passará a ser, se esta lógica vier a ser implantada.

Desde as reformas realizadas em 1994, a incidência sobre o lucro ocorre na apuração da receita bruta das empresas, tendo havido majoração da carga tributária naquela ocasião. Isso permitiu afastar a fiscalização dentro de cada empresa, a fim de apurar se houve lucro ou se estava ocorrendo sua distribuição disfarçada (DDL), o que gerava um contencioso fiscal gigantesco, e abria a porta para eventuais casos de corrupção. A incidência, majorada, passou a ser prévia ao lucro, pois incidente sobre a receita bruta, e, havendo distribuição de lucro, o tributo já teria sido pago antecipadamente. Observe-se que isso trouxe uma vantagem gigantesca para o Fisco, pois antes mesmo da apuração do lucro, este já estava tributado caso ocorresse distribuição.

Sugestões preocupantes

O problema foi bem identificado, pois não se pode negar que a tributação da renda no Brasil seja regressiva, privilegiando quem ganha mais. Aliás, a enorme revolução realizada na tributação do consumo, que, mesmo antes de sua implantação já alcança mais de 50% da arrecadação brasileira, seguramente ampliará a regressividade da carga tributária, pois tal percentual será ampliado.

São preocupantes as duas alternativas apontadas na nota técnica como solução para “promover mais justiça fiscal, além de aumentar a eficiência e a competitividade da nossa economia”. Há uma proposta de solução estrutural, que é a de promover “alguma fórmula de tributação progressiva dos dividendos distribuídos às pessoas físicas, sem exceções”, o que fere a lógica jurídica estabelecida desde 1994, que tem se mostrado adequada sob o ponto de vista prático, com incidência majorada no ingresso das receitas. E há uma proposta de solução transitória, “enquanto tal reforma estrutural não ocorre, medidas alternativas como a imposição de um imposto mínimo sobre os milionários podem cumprir um papel paliativo temporário”, o que é igualmente preocupante, pois isso feriria a lógica da capacidade contributiva, criando uma espécie de imposto sobre grandes fortunas disfarçado, sem discernir sua base imponível ou fato econômico.

O problema da tributação dos dividendos talvez possa ser encaminhado de outra forma, distinguindo as sociedades de pessoas das sociedades de capital. Nas primeiras, sociedades de pessoas, existem sócios e affectio societatis, sendo o dividendo algo que corresponde ao salário dos sócios, uma espécie de pró-labore eventual; já nas segundas, sociedades de capital, não existem sócios, mas acionistas sem qualquer affectio societatis, e há efetiva remuneração do capital investido, conforme expus anteriormente.

O problema da regressividade da tributação da renda é real e persiste, e, considerando o total da carga tributária, se agravará, em razão da revolução tributária em curso na tributação do consumo.

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IMAGEM: Freepik

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