Instituições e confiança
‘O que se questiona é a forma como Executivo e o STF desrespeitaram a competência constitucional do Legislativo, o que apenas reforça o risco que corremos com o enfraquecimento das instituições’
Douglas North, Prêmio Nobel de Economia em 1993 por sua contribuição sobre a importância das instituições para o desenvolvimento dos países, e muitos outros economistas e juristas, têm escrito sobre o tema. Instituições são “as regras do jogo” que devem permitir à sociedade um horizonte para interagir e promover o desenvolvimento. Ao fixar os limites e constrangimentos para a atuação do Poder Público, condiciona a conduta dos agentes políticos, econômicos e sociais.
Alain Peyrefitte, sociólogo francês, em seu volumoso estudo intitulado "A Sociedade da Confiança", ao analisar as causas da "Riqueza das Nações" destaca o papel decisivo do fator mental no desenvolvimento e manifesta a opinião de que o elo mais forte e mais fecundo que conduz ao progresso é aquele que tem como base "a confiança recíproca… entre os cidadãos de uma mesma pátria. Confiança dos cidadãos uns nos outros e na capacidade das instituições de fazer cumprir os contratos. Confiança dos cidadãos no governo e do governo nos cidadãos”.
No Brasil, a regra maior que condiciona as demais é a Constituição, seguida das leis, decretos, regulamentos e regras de atuação dos órgãos públicos, além dos usos e costumes consensualmente aceitos pela sociedade. Nos regimes democráticos, como o Brasil, elas garantem não apenas a alternância dos governantes, como limitam, ou deveriam limitar, seu poder e prerrogativas. Constantes modificações diminuem sua força normativa.
A forma açodada, e até irresponsável, como se alterou profundamente a Constituição no tocante à chamada Reforma Tributária do consumo, afeta a confiança dos cidadãos nas instituições. Se as “regras do jogo” podem ser alteradas com facilidade para atender a interesses dos governantes do momento, não se está em uma “sociedade da confiança”.
Como as instituições representam o principal balizamento para os empresários tomarem decisões, elas são fundamentais. Somente serão válidas e suficientes, contudo, se realmente forem respeitadas em sua essência, e não apenas na aparência, e condicionarem a política e a atuação do governo - Executivo, Legislativo e Judiciário - e a própria atividade empresarial. A confiança nas instituições e a ética da livre iniciativa garantem a liberdade, criatividade e responsabilidade das empresas e pessoas.
Se no campo da economia avançamos na direção de uma "sociedade da confiança", apesar de algumas tentações intervencionistas, no plano político e social, infelizmente, caminhamos para uma situação inversa, na qual predomina a desconfiança e a agressividade entre grupos, impossibilitando a construção de um consenso social com o objetivo de um projeto comum de nação.
Além da desconfiança entre grupos sociais, assiste-se no momento as instituições serem desrespeitadas pelas autoridades que as deveriam defender. Intervenções frequentes do Executivo na Petrobrás e outras estatais, as pressões para nomear diretores da Vale, a nomeação de pessoas que não preenchem os requisitos exigidos pela lei, estatutos, ou mesmo “usos e costumes” para determinados cargos públicos.
Mais recente, temos o caso da lei que estendia o prazo de vigência da Lei que desonerava a folha de pagamento para alguns setores. Aprovada a prorrogação pelo Congresso, a quem, seguindo o princípio da separação dos poderes, cabe legislar sobre a matéria, o Executivo, usando uma prerrogativa que lhe assegura a Constituição, vetou a emenda.
O Parlamento, contudo, derrubou o veto governamental, o que deveria encerrar a questão com a promulgação da lei pelo Congresso.
O Executivo, no entanto, em clara confrontação com o Congresso, e desrespeito à autonomia dos Poderes, editou Medida Provisória sobre o mesmo tema, reduzindo o alcance da medida aprovada pelo Legislativo. Isso gerou reação de muitos parlamentares, que defenderam a simples devolução da MP para o Executivo, sem apreciá-la, mas o parlamento decidiu aprovar outros itens da MP, que não conflitavam com a decisão do Congresso, que foram mantidos, rejeitando novamente as restrições do Executivo à desoneração da Folha.
O episódio, no entanto, não se encerrou, pois o governo, inconformado, recorreu ao STF, através de parlamentares de sua base de sustentação.
Ao Supremo, dentro de suas competências constitucionais, somente caberia se manifestar sobre a constitucionalidade da medida, que parece inconteste porque vigorou por longo tempo. Resolveu, no entanto, extrapolando suas prerrogativas, determinar ao Congresso encontrar forma para compensar a perda de receita decorrente da desoneração, o que foi atendido pelo Parlamento.
Como o Governo não concordou com os valores apresentados pelo Congresso, o Supremo, novamente, extravasa sua competência e se arvora como “conciliador” entre as partes e, provavelmente, se não houver acordo entre Executivo e Legislativo, se tornará “árbitro” na disputa.
Qualquer que seja o resultado dessa disputa, já se configurou o desrespeito tanto do Executivo, que teria que respeitar a decisão do Congresso, como do STF, a quem não caberia julgar o mérito da lei, mas apenas sua constitucionalidade, sem invadir competência do Legislativo.
Independentemente de considerar equivocada a solução encontrada pelo Congresso para a desoneração da folha apenas para alguns setores, essa não é a questão que está em discussão no momento.
O que se questiona é a forma como Executivo e o STF desrespeitaram a competência constitucional do Legislativo, o que apenas reforça o risco que corremos com o enfraquecimento das instituições, e com o desrespeito ao princípio da “harmonia e independência” entre os Poderes, pilares do regime democrático com base na Constituição.
Se considerarmos que o STF vem adotando decisões bastante questionáveis, pelo menos quanto à forma, através de decisões monocráticas, essas ações do Executivo e do Supremo, de desrespeito à competência constitucional do Legislativo, criam incerteza e insegurança jurídica, com prejuízo para os investimentos e, mesmo, para o dia a dia das empresas.
Além disso, medidas casuísticas sempre geram reações dos prejudicados, com o que se agrava a divisão da sociedade, ao invés de contribuir para a convergência em busca de um projeto comum para o país.
Levitsky e Ziblatt, no livro “Como as Democracias Morrem”, afirmam que as Democracias não morrem apenas por meio dos golpes militares, ou de aristocratas tiranos. Na verdade, no mundo ocidental, o enfraquecimento democrático se dá de forma gradual e minando os princípios democráticos por dentro. Afirmam ainda que as “as normas legais escritas que regem a vida do país não serão suficientes para garantir a governabilidade e o progresso, se não contarem com um grau de adesão voluntária da maioria da sociedade, que com elas se identifique e as defenda”.
Isso significa que as decisões dos três poderes precisam contar com o apoio da sociedade, sem o que não se sustentam ao longo do tempo. Na medida em que o governo, em suas três esferas, não respeita as instituições, contribui para acirrar a agressividade dos grupos sociais.
Com isso, segundo Peyrefitte, corre-se o risco de o país se transformar em uma “sociedade da desconfiança… de todos contra todos”, o que inviabiliza o desenvolvimento econômico e social.
Na medida em que o “espaço de convergência” vai se estreitando, a democracia começa a correr riscos de definhar gradualmente, mas persistentemente. São sinais de alerta a erosão das normas políticas, rejeição ao respeito mútuo e a negação da legitimidade do oponente.
Essas advertências de Levitsky e Ziblatt deveriam nos alertar sobre a necessidade de não discutirmos apenas o mérito das propostas, mas, também, em que medida contribuem para o enfraquecimento das instituições, porque se continuarmos a desrespeitar a Constituição e as “regras do jogo” poderemos estar colocando em risco mais do que medidas desaconselháveis: o próprio sistema de governo.
IMAGEM: Dida Sampaio/AE