Faltam boas cafeterias em São Paulo?

Lugares para se tomar um bom café há aos montes na cidade, mas ainda sinto falta daquelas cafeterias charmosas e aconchegantes onde se pode passar um dia todo à toa, lendo por horas, sem pressa, como as muitas espalhadas por Buenos Aires

Vitor França
17/Mai/2024
Economista pela FEA-USP e mestre em economia pela FGV-SP
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Faltam boas cafeterias em São Paulo?

Acho que li dia desses – infelizmente não me lembro onde... – que a qualidade de vida num bairro pode ser medida pela distância entre a sua casa e o café mais próximo, em uma relação inversa, é claro: quanto menor a distância, maior a qualidade de vida.

Faz todo o sentido! Cafeterias, afinal, são lugares para se passar um tempo, ver pessoas, encontrar pessoas, normalmente trazem vida e movimentos para as calçadas, quebrando (no caso de São Paulo) a monotonia dos muros e das grades dos condomínios.

Cafés são, ainda, espaços dedicados ao lazer, à gastronomia e, quanto mais perto de casa, menores os deslocamentos necessários, que poderão, inclusive, ser feitos a pé, diminuindo, com isto, a necessidade do automóvel para aquelas pequenas e tão necessárias quebras na rotina.

No mais, se há cafeterias perto da sua casa é bem provável que haja também mercados, padarias, farmácias, sorveterias, bares, restaurantes, o que significa se tratar de uma região na qual é possível fazer boa parte das atividades cotidianas a pé, sem precisar do automóvel – e, portanto, sem ter que encarar congestionamentos, gastos com estacionamento, sem dizer nas menores emissões de poluentes. 

Até há uns cafezinhos bem simpáticos perto de casa, mas, como gosto muito de caminhar por aí, dias desses estava de folga do trabalho e resolvi sair pela cidade à procura de um café perfeito onde pudesse passar o dia todo lendo, sem pressa, à toa... Mas, infelizmente, não encontrei o lugar ideal.

Em São Paulo, particularmente no centro expandido, há muitas, inúmeras cafeterias. Há muitos lugares para se tomar café da melhor qualidade, uns mais caros, outros mais baratos. Há inúmeros lugares para se tomar café acompanhado por doces deliciosos. Há cafeterias instragramáveis aos montes, muitas com longuíssimas filas. Há também os muitos botecos que servem café. E há ainda os cafés servidos nas inúmeras padarias paulistanas. Cafeterias charmosas e aconchegantes, daquelas onde se pode passar um dia inteiro à toa, porém, me parecem raras na Pauliceia, a despeito da relação histórica entre o café e a riqueza da cidade.

Ou será que eu, meio avesso às redes sociais, às buscas no Google e ainda apegado à mágica dos encontros espontâneos, é que não havia procurado direito? Ansioso para retomar logo a releitura do excelente “O cantor de tango” – do argentino Tomás Eloy Martínez – com um bom café, lembrei então de um artigo do Roberto Arlt, outro escritor argentino, sobre as cafeterias brasileiras – em comparação às da sua Buenos Aires querida, é claro.

Sobre os cafés, em geral, escreve o autor: “No conceito de todo cidadão que respeita os direitos da preguiça, porque também a preguiça tem direitos segundo os sociólogos, o café desempenha um lugar proeminente na civilização dos povos. Quanto mais uma raça for fã de ficar de papo pro ar, melhores e mais suntuosas cafeterias terá em suas urbes. É uma lei psicológica, e não há o que fazer: assim dizem os sábios”.

Por sua vez, “os cafés daqui [do Brasil] são como certos lugares incômodos, onde se entra apressado e se sai mais rápido ainda”, ele conclui sobre os cafés do Rio de Janeiro dos anos 1930 – e tomo a liberdade de estender a conclusão para a grande maioria das cafeterias paulistanas da atualidade.

Para o autor, as características dos cafés daqui estariam relacionados ao fato de que trabalhamos demais e não temos tempo para jogar fora em cafés – contrariando, assim, a ideia corrente de que o brasileiro seja preguiçoso por natureza.

“Aqui as pessoas trabalham, sem brincadeira. [...] Dão duro, dão duro no batente incansavelmente, e juntam o que podem. Suas vidas se regem por um princípio subterrâneo de atividade, como diria um senhor sério escrevendo artigos sobre o Brasil”, relata ironicamente o autor. E continua: “Trabalham, trabalham brutalmente e não vão ao café exceto por breves minutos”. A não ser, corrijo eu, se estiverem no café a fazer trabalho remoto. E o café, de espaço de lazer e culto à preguiça, se torna, então, um local de trabalho.

As considerações de Roberto Arlt me remeteram a outro romance que li recentemente, o “Vida ao vivo” do Ivan Ângelo. Falando sobre São Paulo, diz o protagonista da obra em certo momento: “As cidades vão inventando seus moradores, vão criando um estilo. Reparem no jeito da paulistana ou do paulistano de caminhar na rua: o passo é firme, decidido, eles não gingam o corpo em balanceio de quem se dá tempo, não perambulam sem destino, não seguem a esmo nem andam torto. Todo mundo sabe aonde vai, e vai indo”.

Os cafés por aqui, neste sentido, seriam desenhados para que ali sejam realizados breves encontros, uma parada rápida de manhã ou no meio da tarde ou uma esticadinha de alguns minutos, não muito mais do que isso, após o almoço. Nada de perder tempo à toa. Quando pensados para que as pessoas passem mais tempo ali, a principal preocupação parece ser a disponibilização de infraestrutura adequada para que, dali, elas possam trabalhar remotamente.

Enfim, tudo isto para dizer que cafeterias há aos montes em São Paulo, sim, é verdade, mas que, ao menos para mim, fazem falta por aqui os cafés... de Buenos Aires?

As comparações entre São Paulo e Buenos Aires, as duas maiores cidades do Brasil e da vizinha Argentina, respectivamente, parecem mesmo inevitáveis e ganharam ainda mais força com os recentes episódios do São Paulo nas Alturas sobre a invejável urbanidade da capital portenha.

Em determinado momento do primeiro episódio, quando fala da movimentada Calle Corrientes, um dos principais corredores culturais de Buenos Aires, Raul Juste Lores brinca com as prioridades dos moradores de Buenos Aires na crise: “O portenho em crise não troca de carro, não viaja para o exterior, não reforma a casa, e uma longa lista de sacrifícios, mas teatros, cinemas e restaurantes vivem cheios”.

Em outro de seus artigos sobre o Brasil, Roberto Arlt ataca nossos supostos provincianismo e ignorância, lembrando que, na Argentina, os operários da época seriam mais instruídos, e os sindicatos tinham bibliotecas, diferentemente do que aconteceria no Brasil. Escreve ele: "O trabalhador [brasileiro] não lê, não se instrui, não faz nada para sair de sua paupérrima condição social".

Sobre essa questão, uma informação do vídeo do São Paulo nas Alturas chamou particularmente a minha atenção: além dos 24 teatros cercados por bares e restaurantes, a Calle Corrientes conta, sozinha, com 58 livrarias. Olha, nunca fiz a conta, mas não ficaria surpreso se me dissessem que não há tantas livrarias de rua em todo o centro expandido de São Paulo... [embora, por mais surpreendente que possa parecer, o número deve ser maior, já que, segundo a RAIS, em 2022 havia 451 estabelecimentos de comércio varejista de livros em toda a capital paulista].

As comparações entre São Paulo e Buenos Aires, particularmente em questões urbanas ligadas à qualidade dos espaços públicos e privados, ao volume de estabelecimentos dedicados a atividades culturais e às características dos cafés, fazem a gente pensar que, para além dos equívocos mais evidentes no nosso planejamento urbano (como a imposição de recuos frontais e laterais nos edifícios, para citar apenas um exemplo), talvez muito do que urbanistas entendem como problemas esteja ligado a nossos valores e preferências como sociedade; enfim, a questões sociológicas mais profundas.

Pensando nisto, lembrei, por exemplo, da falta de urbanidade paulistana descrita pela escritora curitibana — radicada em São Paulo — Giovana Madalosso em seu ótimo romance “Tudo pode ser roubado”. Logo no início da narrativa, a protagonista descreve o entorno do badalado restaurante no qual trabalha, perto da Avenida Paulista: “Uma das laterais dá para uma praça que poderia ser um cartão postal de São Paulo caso São Paulo fosse honesta a respeito de si mesma. A praça é só um banco e um chafariz, sombreados por prédios de escritório. Desses prédios, descem pessoas que não sentam nos bancos, nem contemplam o chafariz, só fumam um cigarro e voltam correndo para dentro, talvez porque eles não saibam muito bem o que fazer com um banco e um chafariz. Nossos clientes é que dão uma certa vida à praça, esperando mesa por ali com seus drinques na mão”.

Conforme analisei em artigo publicado no Caos Planejado, “a descrição revela uma área central de São Paulo carente de espaços públicos e na qual os raros espaços são mal planejados e pouco frequentados, uma cidade onde o lazer e os encontros parecem exigir necessariamente dinheiro, seja em um bar, shopping, café ou restaurante”. Assim como também sugerem os textos de Roberto Arlt e Ivan Ângelo, os paulistanos parecem não ter tempo a perder, e isto se refletiria no nosso urbanismo (basta lembrarmos que na nossa mais famosa e celebrada avenida, a Paulista, praticamente não há locais para se sentar...).

Lembrei também de uma fala do escritor norte-americano Benjamin Moser, para quem “São Paulo é a cultura da fazenda levada ao seu extremo lógico”, e os condomínios, shoppings e torres corporativas atuais, assim, basicamente estariam reproduzindo a lógica das antigas fazendas isoladas, onde empresários fabricavam produtos agrícolas com seus escravos e mal saíam ao “perigoso exterior”.

Será que nossos problemas urbanos estão ligados a questões muito mais profundas – e que, por isto, são tão difíceis de resolver? Pior: será que aquilo que nossos urbanistas entendem como problemas (espaços públicos vazios e abandonados, prioridade para os carros, falta de verde, de vida nas calçadas, condomínios murados, entre outros) nem sejam assim encarados por grande parte da população?

Pois prefiro acreditar que talvez até haja esses aspectos mais particulares da nossa relação com a cidade, mas que há, acima de tudo, um trabalho de convencimento a ser feito, de mostrar que aspectos urbanos que fazem de cidades como Nova York, Tóquio, Paris ou Buenos Aires lugares tão bonitos, caminháveis, interessantes, agitados, seguros e agradáveis também podem ser replicados e funcionar bem por aqui.

Sigo também à procura do café ideal, charmoso, aconchegante, onde eu possa passar em São Paulo um dia inteiro à toa, lendo por horas, sem pressa. Sugestões, por sinal, são muito bem-vindas! Desde que bem-intencionadas, sem hostilidade. Que nenhum paulistano dos mais ufanistas venha simplesmente me mandar para Cuba. Ou, no caso, para Buenos Aires...

 

IMAGEM: Freepik

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