'Cesta básica zerada tem mais apelo político-ideológico que nutricional'

O advogado tributarista Luiz Roberto Guimarães Erhardt, juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, fala sobre os prováveis efeitos da reforma tributária no agronegócio

Karina Lignelli
31/Out/2024
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'Cesta básica zerada tem mais apelo político-ideológico que nutricional'

Responsável por 25% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, o agronegócio recebe tratamento tributário diferenciado para garantir a segurança alimentar da população. Mas, e com a reforma tributária, como fica esse setor?

Com a proposta, que prevê a adoção de uma alíquota única, o agro sofrerá revisões ou modificações de benefícios que podem aumentar o custo de insumos, como fertilizantes e maquinários. Em consequência, o custo da produção tende a aumentar também. Esse movimento poderá culminar com a alta no preço final dos alimentos ao consumidor, especialmente para os de menor poder aquisitivo. 

Mesmo ainda parecendo um pouco cedo para medir os efeitos da reforma, especialistas, como o advogado tributarista Luiz Roberto Guimarães Erhardt, sinalizam que as mudanças previstas trazem incerteza financeira, jurídica e pontos de atenção que podem influenciar na competitividade do agronegócio. Inclusive no mercado internacional. 

Em entrevista ao Diário do Comércio, Erhardt, palestrante do fórum "Tendências para o Agronegócio Brasileiro", realizado na Associação Comercial de São Paulo (ACSP) nesta quinta-feira, 31/10, afirma que a implantação da reforma deveria, segundo justificativa do Governo, se dar com neutralidade, uma vez que a ideia é não elevar a carga tributária. "A neutralidade pode até ser alcançada em patamares nacionais. Porém, é visível que para isso alguns setores serão mais onerados e outros desonerados", explica.

Os pequenos produtores devem sentir mais os impactos dessas mudanças porque têm menor capacidade financeira para absorver custos adicionais, dificuldade de adaptação às novas exigências e de obtenção de créditos tributários.

Até a alíquota zero da cesta básica reduzida e os 60% de redução de alíquota da lista estendida (inclui proteína animal) não são ideais, segundo o advogado. "Os consumidores de maior poder aquisitivo continuarão a ter acesso aos mesmos produtos essenciais isentos, enquanto os consumidores de baixa renda ainda enfrentarão dificuldades, o que gera desigualdade fiscal." 

Formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (1995) e pós-graduado pela FGV Direito SP (FGV LAW), entre outras atribuições, Luiz Erhardt é juiz da 5ª Câmara do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo em exercício e diretor do Instituto Movimento Cidades Inteligentes desde 2018. A seguir, ele detalha mais os prováveis efeitos da reforma no agro:

 

Diário do Comércio - Hoje o agronegócio tem um tratamento diferenciado no sistema tributário. Quais os impactos previstos no setor com a reforma tributária?

Luiz Roberto Guimarães Erhardt - A implantação dessa reforma deveria, segundo justificativas do Governo, se dar com neutralidade, uma vez que não se buscaria elevar a carga tributária. Claro que os efeitos reais somente poderão ser percebidos com precisão quando já implantadas as novas regras, mas já se estima que a neutralidade pode até ser alcançada em patamares nacionais, envolvendo todos os setores e etapas de produção. Porém, é visível que alguns setores serão mais onerados e outros desonerados.

No caso do agronegócio, por décadas o sistema tributário foi se ajustando para alcançar alguma justiça fiscal por meio de concessões de benefícios, desonerações, diferimentos, reduções de alíquota, constituição de créditos presumidos e outros incentivos concedidos pela União, Estados e Municípios. Pelo texto da reforma, esses temas estão sendo revisitados com o objetivo de dar um único e nacional tratamento, mais voltado para a isenção da cesta básica, e redução de 60% de alguns produtos para garantir a segurança alimentar. 

Mas há outros impactos importantes aos quais se deve ficar atento, como a revisão ou modificação de benefícios fiscais, como, por exemplo, o possível aumento do custo de insumos, encarecendo os fertilizantes, defensivos agrícolas e maquinários. 

Merece atenção também a forma de devolução dos créditos tributários que, apesar de melhorar o fluxo de informações na composição, com regras aparentemente mais claras, não resolve todos os desafios, principalmente nas exportações. Sobre esse ponto, foram considerados não-contribuintes do IBS e da CBS aqueles que faturam menos de R$ 3,6 milhões por ano.

Para tentar evitar quebra de mercado para aqueles que não serão integrados ao novo sistema, foi autorizada a presunção de crédito na aquisição de bens e serviços do pequeno produtor rural, cujo saldo poderá ser deduzido pelo contribuinte. Essa dedução faz sentido para as operações internas. Porém, no caso de exportação, não haveria débitos a serem deduzidos, o que poderia tornar cumulativo e definitivo esse incremento da carga tributária.

 

Então os pequenos produtores serão os mais afetados? 

Existem fatores positivos e negativos que afetarão os pequenos produtores. Como fator positivo, há de ser destacada a possibilidade de o produtor pessoa física ou jurídica com receita inferior a R$ 3,6 milhões (ou seja, optante pelo Simples Nacional) não precisar ser contribuinte do IBS e CBS. Da mesma forma, se mostra positiva a possibilidade de gerar créditos presumidos de IBS e CBS nessas aquisições de bens e serviços.

Como fatores negativos aos pequenos se destacam a menor capacidade financeira para absorver custos adicionais, inclusive decorrentes de possíveis - ou esperados - acréscimos no preço na aquisição de máquinas e insumos, e a provável dificuldade de adaptação às novas exigências fiscais e obtenção de créditos tributários.

Há ainda um debate sobre as operações realizadas de forma cooperada, uma vez que poderia haver dupla tributação, desafiando a própria Constituição Federal. Esse é outro ponto que merece maior exame para evitar distorções do sistema tributário.

 

Quais os principais desafios que o agro brasileiro enfrenta atualmente? 

Os desafios vão desde a logística e infraestrutura até a pressão por práticas sustentáveis e a alta dependência de exportações. A reforma tributária, se aprovada nos moldes atuais, pode influenciar esses desafios de maneira significativa.

Existem inúmeros pontos de atenção, como, por exemplo, o impacto direto sobre os custos logísticos, com a elevação do preço de combustíveis e transporte. Da mesma forma, se mostra como desafio atual a manutenção dos custos de produção, como fertilizantes, defensivos agrícolas e aquisição de máquinas e equipamentos. Esses produtos têm grande parte de sua cadeia ligada ao mercado internacional, sendo muito sensíveis à variação cambial e políticas econômicas.

Com a reforma, a unificação e o potencial aumento de alíquota sobre os insumos, muitos deles que eram isentos ou contavam com alíquotas reduzidas, pode encarecer a produção, diminuindo a competitividade, especialmente em mercados internacionais, que gozam de custos de produção menores.

 

Nesse contexto, o que pode influenciar esses desafios e sua competitividade no cenário global?

Tenhamos em mente que os principais competidores do Brasil no agronegócio, como Estados Unidos, Argentina e países da União Europeia possuem incentivos fiscais, infraestrutura avançada e subsídios governamentais.

Assim, sem compensações que igualem os benefícios dos competidores internacionais, o agronegócio brasileiro ficará em desvantagem, impactando nas exportações, o que prejudicaria o saldo da balança comercial.

Vejo que a reforma tributária, se aprovada como está, trará alguns potenciais obstáculos ao agronegócio brasileiro, impactando negativamente sua competitividade global, inclusive com a possível perda do crédito presumido, que se tornaria custo do exportador. 

Acredito que medidas complementares, como a manutenção de incentivos fiscais para exportação, políticas de crédito e desoneração de insumos deverão ser essenciais para atenuar os impactos negativos e sustentar a competitividade do setor.

 

Sobre a cesta básica, a lista de produtos com alíquota zero, de 24 itens, é a ideal do ponto de vista tributário? 

Esse conceito tem mais um apelo político-ideológico e financeiro do que nutricional. Sob aspectos tributários, seguindo a lógica da reforma de consumo, quanto maior o número de produtos beneficiados por isenções ou reduções de alíquota, maior será a alíquota padrão dos demais produtos sujeitos ao regime geral, ou seja, sem benefícios.

Na redação original do PLP 68/2024, a proteína animal não integrava a cesta básica isenta, sofrendo a redução de alíquota de 60%. Nos últimos momentos da votação na Câmara dos Deputados, foi aprovada a emenda que tornava isenta a proteína animal. Assim, carnes e queijos, entre outros, passariam a ser isentos.

A inclusão da carne na cesta básica representaria um acréscimo na alíquota básica do IVA de 0,56% e os queijos, mais 0,13%, o que já não permitira a manutenção dos 26,5% inicialmente projetados para a alíquota padrão da reforma tributária.

O Senado Federal ainda vai ter que enfrentar essa questão, pesando se seria melhor a isenção plena, sacrificando a alíquota básica que atinge outros setores, ou se seria o caso de retornar à redução de alíquota inicialmente proposta, de 60%.

 

Quais os efeitos dessa nova configuração da cesta para o produtor, então? E para o consumidor final?

A nova configuração da cesta básica com alíquota zero ou reduzidas para alguns produtos essenciais pode ter efeitos distintos para produtores e consumidores finais. Esses impactos dependerão de como os itens serão definidos e classificados na cesta, e de como a tributação será aplicada de forma seletiva.

Para os produtores, não há como perder de vista a possível elevação no custo de produção, decorrente do emprego de alíquota única sobre seus insumos, tais como fertilizantes, ração, defensivos agrícolas e energia. Em decorrência, para manter a competitividade, esses produtores teriam que absorver essa elevação, reduzindo sua margem de lucro.

Existem, ainda, outras mudanças que seriam impossíveis de mensurar nesse momento. Veja, ao aplicar alíquotas reduzidas para proteínas mais acessíveis, mantendo-se a sua integralidade, para aquelas mais nobres ou de maior valor agregado, pode gerar uma mudança de oferta ou de consumo.

Produtores que se especializam em nichos de mercado com carnes de alta qualidade, como carnes premium ou orgânicas, podem enfrentar maiores cargas tributárias, o que pode dificultar a competitividade desses produtos especialmente no mercado interno, quando comparados com as proteínas incentivadas. 

 

Ou seja, de qualquer jeito, algum tipo de oneração o consumidor também vai ter.  

Por isso digo se tratar de uma questão mais político-ideológica do que nutricional, pois não se estaria incentivando produtos de maior qualidade. Pelo contrário, o Governo está estimulando sua redução, em virtude da provável diferença de preço ao consumidor final, quando comparados os produtos taxados como básicos e aqueles de qualidade premium.

Para o consumidor final, vejo que poderá haver aumento de preços na cesta básica decorrente da elevação do custo de produção. Ora, se o custo de produção aumentar, o preço das proteínas e outros produtos na cesta serão impactados, reduzindo o poder de compra dos consumidores - especialmente para as classes de baixa renda.

Embora o alívio tributário da alíquota zero na cesta básica beneficie todos os consumidores, ele não resolve completamente a questão da desigualdade fiscal. Os consumidores de maior poder aquisitivo continuarão a ter acesso aos mesmos produtos essenciais isentos, enquanto os consumidores de baixa renda ainda enfrentarão dificuldades.

*Assista o vídeo completo do Fórum "Tendências para o Agronegócio Brasileiro" aqui


IMAGEM: Divulgação

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