Seis décadas depois, esses rapazes vão passar o bastão
Os primos Álvaro Lopes e Jorge da Conceição Lopes (no centro e à direita) vão misturar parentes e profissionais de fora para administrar a quase nonagenária Casa Santa Luzia
Um dos momentos mais complicados enfrentados por empresas familiares é quando se aproxima a hora de passar o comando do negócio para a geração seguinte. A disputa entre os mais jovens para assumir determinadas funções é inevitável e, não raramente, resulta na venda do negócio.
Pesquisas realizadas mundo afora atestam que, de cada cem empresas familiares, cerca de 30 conseguem realizar a transição para a segunda geração e, dessas, não mais do que cinco conseguem chegar às mãos da terceira geração.
Entre 1982 e 1989, havia 320 empresas americanas pertencentes a famílias na lista da revista Forbes. Em 2011, esse número caiu para 103. Consultores especializados na gestão de empresas familiares afirmam que estes números refletem uma tendência mundial.
É fácil imaginar o que sucede quando um movimento de sucessão aflora em ambiente desfavorável, com economia em recessão, inflação, juros em alta e dólar nas alturas.
Instalada em um dos endereços mais nobres de São Paulo, na alameda Lorena, nos Jardins, a Casa Santa Luzia, vive exatamente este momento.
Os primos Álvaro Lopes, 90, e Jorge da Conceição Lopes, 84, que comandaram a tradicional loja por décadas, acabam de desencadear processo de sucessão profissionalizada da empresa.
Juntamente com outro primo, Antônio, já morto, a dupla faz parte da segunda geração da loja, fundada por Daniel, pai de Álvaro, em 1926, na esquina das ruas Augusta e Oscar Freire.
Sete pessoas, entre filhos e sobrinhos dos três primos, pertencentes à terceira geração, trabalham, atualmente, em funções de direção e gerência na empresa.
Para os Lopes, porém, chegou o momento de trazer profissionais de fora do núcleo, para, juntamente com a família, gerir o dia a dia e planejar os rumos do supermercado, conhecido pelo atendimento ao público de maior poder aquisitivo e pela variedade de produtos importados.
Para ajudar na escolha dos profissionais e na orientação dos acionistas na nova fase de administração da loja, a família contratou a consultoria Amrop - Panelli Motta Cabrera.
A entrada de profissionais de fora em uma empresa familiar nunca é uma decisão fácil para os donos. A intimidade das relações familiares e o modo muitas vezes simples de tocar a empresa acabam sendo expostos.
É como alguém deixar entrar um estranho dentro de casa para conviver com a família no dia a dia. Não deixa de ser um incômodo.
“Mas, às vezes, para manter a harmonia da família e o negócio, a solução para uma empresa é contratar profissionais que não pertençam a nenhum dos blocos de acionistas”, afirma Luiz Carlos Cabrera, sócio-diretor da Panelli Motta e Cabrera.
Foi o caminho escolhido pela Casa Santa Luzia. No caso, a harmonia entre os familiares existe, segundo afirma Cabrera, e está em primeiro lugar. O respeito aos mais velhos também prepondera. Outro ponto fundamental neste caso: todos os acionistas possuem um objetivo comum: desejam a perenidade da casa.
“Mas eles têm a plena consciência de que as condições de mercado estão se alterando e que existe a necessidade de modernização da loja para que o sucesso de hoje se perpetue”, diz Cabrera.
Na tarde de sexta-feira (19), 'seu' Jorge e 'seu' Álvaro, como são chamados por todos na empresa, ao lado de Ana Maria Silva Lopes, filha de seu Jorge, receberam a reportagem do Diário do Comércio para falar da história e da planejada sucessão profissional.
Emocionado, com a voz embargada, Jorge diz que tenta transmitir aos descendentes o que o tio Daniel (“um homem extremamente inteligente”) transmitiu para ele e para os primos, e que resultou no sucesso do empreendimento.
Com uma oferta de quase 30 mil itens (entre 30% e 40% de produtos importados), a Casa Santa Luzia consegue atrair desde o público do bairro e de fora da cidade até chefs de cozinha e turistas.
Neste ano, segundo afirma, mesmo com a economia recessiva, o faturamento real da loja (não revelado) tem crescido entre 2% e 3%, na comparação com igual período do ano passado. Um bom resultado, considerando que as vendas do comércio dos mais variados produtos estão em queda em comparação com o desempenho de 2014.
“Meu tio dizia que era preciso ser o número um, pois da segunda à décima posição não fazia diferença", afirma. "Falava também que, no setor de alimentação, o melhor era só ter uma loja. Não deveríamos ter duas, três, pois, do contrário, perderíamos o controle da qualidade.”
De acordo com a cartilha do fundador, os primos não deveriam entrar em negócio que não entendessem. Aplicar no mercado financeiro era arriscado. O melhor seria investir em estoques. Esses conselhos são seguidos à risca até hoje.
Em uma palestra na Fundação Getúlio Vargas (FGV), tempos atrás, seu Jorge diz que acabou "assustando" os professores com seu discurso. “Falei tudo ao contrário do que eles ensinavam", diz. "O que mais chocou foi o fato de afirmar que o estoque tem de ser alto. Bem, nunca mais fui convidado para aparecer lá.”
Manter os ensinamentos do tio não foi fácil mesmo internamente, especialmente quando os familiares da terceira geração passaram a dar palpites.
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“Algumas de suas decisões tiveram grande impacto no negócio, como a de se manter apenas uma loja. Essa é uma decisão complicada. Veja a complexidade da cidade, a dificuldade que as pessoas têm para se movimentar”, afirma o consultor Cabrera.
A entrada no e-commerce, mais recentemente, foi outra decisão difícil para a família.
E como manter a variedade de importados, que sempre foi o forte da empresa (representa entre 30% e 40% da oferta de produtos), em meio às oscilações cambiais sem riscos para a rentabilidade?
Até maio passado, o dólar acumulou alta de 18%. 'Seu' Jorge diz que, como trabalha com estoques para mais de quatro meses de vendas, dependendo do produto, a Santa Luzia consegue evitar o repasse integral da subida da moeda para os preços.
O que Cabrera tem dito para os Lopes é que é preciso ter interlocutores e reforçar a governança, na linha da orientação. Como construir uma assembleia de acionistas e conselhos de família e de administração.
“Eles estão começando agora a fazer isso. O conselho de acionistas, eles já têm, o de família, é informal, mas o de administração ainda não têm”, diz Cabrera.
Profissionais de fora já ocupam cargos de gerência na loja. A última contratação foi de Fernanda César Oruê, gerente de marketing, que trabalhou 23 anos na Sadia, com passagem pela rede de confeitaria Amor aos Pedaços.
Novas posições estão em discussão, inclusive a de presidente, que hoje não existe de maneira formalizada. Juntos, Jorge e Álvaro desempenham essa função.
SEM BRIGAS
“O processo de sucessão profissionalizada na Casa Santa Luzia não restringe ou não impede que, no futuro, uma pessoa da família possa vir a ser o principal executivo. O processo sucessório vai misturar os familiares e os profissionais”, diz Cabrera.
O mais importante em toda essa convivência familiar é o respeito mútuo, dizem eles. “Aqui nunca houve brigas entre as famílias, nem por liderança, e isso tem muito a ver com o sucesso da empresa”, diz Ana Maria, diretora-executiva.
Ela admite, porém, que nem sempre tudo foi um mar de rosas nas relações com os parentes. “Teve preço para tudo. Meu pai e meus tios abriram mão de muita coisa, até de convivência com a família, em prol do negócio. Alguns familiares que passaram pela empresa também não conseguiram chegar a uma boa colocação”, afirma.
Exercem igualmente cargos de diretores-executivos na Casa Santa Luiza: Jorge (filho de Jorge), Azuil (filho de Álvaro), Luiz Antônio (filho de Antônio) e Carlos Morgado (sobrinho de Antônio).
“Tem alguns que não trabalham e alguns que trabalham mais do que outros”, afirma 'seu' Álvaro, sorrindo, para logo em seguida ser repreendido por seu Jorge. “Brincadeira dele, aqui todo mundo trabalha igual”.
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