Prazo de validade: 70 anos
'As leis devem ser justas, mas há legisladores que são mais realistas do que o rei'

Nara, 65, e Roberto, 74, estão casados há 40 anos. Têm um filho, Flávio, uma nora e três netos que eles adoram. Comerciantes, com duas lojas de autopeças em bairros estratégicos da cidade de São Paulo, guardaram dinheiro suficiente para “curtir” a vida quando se aposentassem. Entregaram a administração dos negócios ao filho e traçaram seus planos de viagem.
Mas uma reviravolta modificou os planos. O filho, Flávio, se separou da esposa – ela pegou mala e cuia e foi para destino ignorado – e ele não conseguiu dar conta do trabalho e das crianças. Está em depressão profunda. Nara levou os três netos pequenos para casa, tem de ter cuidado redobrado, pois sentem a falta da mãe, e ainda ajuda Roberto, que reassumiu a administração das lojas. “Vou criar meus netos”, disse Roberto, “porque não quero que cresçam sem esperança”.
Histórias como esta pululam no cotidiano das famílias. E por esse Brasil afora, há pelo menos uma década, ecoam em nossos ouvidos dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – apontando a quantia de 12 milhões de lares que são sustentados pela aposentadoria, quase sempre acrescida de ganhos extras para que o orçamento dê conta. Num grupo de dez idosos, pelo menos três sustentam suas famílias. É verdade que em muitos casos, a aposentadoria veio cedo: 50, 55 anos, mas essa tendência se verifica também nas famílias que dependem menos da aposentadoria, mas cujos avós acabam sendo o sustentáculo de filhos e netos.
Sendo assim, parece injusto, se não até absurdo em muitos casos, o fato de senhores e senhoras serem tratados como pessoas limítrofes ou que careçam de leis que os “protejam” de atos inconsequentes que eles mesmos possam vir a praticar. Refiro-me a algo bastante específico: o denominado Regime da Separação Obrigatória de Bens, determinado na lei por meio do artigo 1641 do Código Civil e seu inciso II, que dita: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta (70) anos”. Ou seja, para a lei, 70 anos é o “prazo de validade” do juízo dos idosos brasileiros. Esse artigo alterou a redação do inciso II do art. 1.641 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Antes disso, o “prazo de validade” era de sessenta (60) anos. A alteração que se deu com a lei nº 12.344 em dezembro de 2010, foi em parte devido à pressão da sociedade sobre os legisladores, por meio dos especialistas do Direito de Família.
A ideia é que ao restringir a liberdade da administração de bens para casamentos após os 70 anos, se esteja protegendo os velhinhos e velhinhas das moças e moços interesseiros. Pode parecer pertinente, mas tal inciso apenas discrimina, constrange e não tem qualquer relevância prática. Por quê?
Bem, imagine que um senhor de 70 anos, em juízo perfeito, portanto sem qualquer indício de que seja necessário “interditá-lo” – e eu explicarei esse termo mais adiante. Ele pode comprar ações, vender empresas, alienar e doar imóveis, e fazer e refazer testamentos. Se assim é, não será uma lei discriminatória que o protegerá da ambição alheia. Além disso, não há idade para que se faça um testamento. Nele, o senhor ou a senhora, septuagenários apaixonados, podem designar até 50 por cento dos seus bens à pessoa amada, se desejarem.
Sendo assim, o inciso II do artigo 1641 soa mais como uma necessidade doméstica, um desejo do legislador que em função de alguma experiência pessoal acreditou que discriminar os idosos seria uma maneira de proteger o patrimônio das famílias. Enganou-se.
Tanto é que, ao contrário do que presume a lei, Nara e Roberto, ao invés do descanso ou momentos mais relaxados, ganharam mais responsabilidades e tarefas. Na verdade, na maioria dos casos, os avós – casados, viúvos ou divorciados, não importa a situação civil – ajudam com prazer, e também não pesa a idade: se 50, 60, 70 ou mais anos.
Relato todos esses fatos para flagrar o quanto de lucidez e sabedoria são necessárias para organizar o orçamento e manter a casa em pé. Mas se, enfim, senhores e senhoras decidem levar uma vida mais prazerosa e buscar a felicidade, não é raro ver filhos indignados. Ainda que sustentem e deem o melhor de si para a família, são cerceados e julgados por estes mesmos beneficiados. E é então que, como um mágico tira uma lebre da cartola, a família procura um advogado para interditar o “revoltoso”.
A interdição é tema muito estudado entre profissionais do direito e da saúde mental. Trata-se de uma medida judicial que impossibilita a pessoa de gerir sua própria vida e administrar seus bens.
De acordo com o artigo 1761 do Código Civil, são passíveis de interdição aqueles que: “por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; ou que por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; os doentes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; os excepcionais sem completo desenvolvimento mental e os pródigos”.
Ora, uma pessoa que trabalhou a vida toda, foi e ainda é útil à sociedade e à família e que resolve ser feliz não se encaixa em nenhuma dessas características. Portanto, não deveria ser tratado como necessitado de proteção, muito menos na hora de se casar.
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