Gucci, Shinola e o poder do comércio para recuperar Detroit
Há mais de uma década que a cidade norte-americana ensaia uma retomada. Com muitos lotes e imóveis abandonados, marcas de luxo tentam criar um novo centro comercial
Nos últimos anos, o senso de comunidade no varejo tem sido muito citado como uma forte tendência para o presente e futuro das marcas. Entender como a localidade em que está inserido funciona e o que as pessoas que ali vivem necessitam e aspiram pode ser um bom norteador para o negócio.
Embora ainda estejamos imersos em um varejo muito voltado à escala, volume e multiplicação de padrões, já há empresas com posturas mais respeitosas ao que está acontecendo no mundo - com processos mais humanizados e espaços físicos que proporcionam diferentes tipos de conexão com o consumidor.
Entender que uma marca não precisa se apresentar sempre da mesma forma pode ser um ponto de partida interessante para quem deseja mudar. Uma loja recém-inaugurada pela marca de luxo Gucci, no centro de Detroit, nos Estados Unidos, materializa bem essa perspectiva.
Na prática, o novo espaço nem é tão inovador em relação aos seus produtos ou apresentação, mas o que impacta o público nesse caso é a relação criada com o entorno e com quem passa pelo endereço.
Inaugurada há poucas semanas, a loja nova vem sendo estruturada desde 2019, quando a Gucci passou a interagir com o público local por meio de diálogos e pequenos eventos. O contexto de Detroit é um tanto diferente das metrópoles e endereços badalados em que as marcas de luxo costumam se instalar.
Há mais de uma década que a cidade norte-americana ensaia uma retomada, especialmente, em seu centro comercial. Muitos lotes vazios e imóveis abandonados ainda deixam bairros inteiros às moscas após a famosa indústria automobilística de Detroit ter fracassado.
O CONTEXTO DE DETROIT
Em 1950, o automóvel transformou Detroit numa das maiores cidades da América como próspero berço da indústria automobilística norte-americana. Foi o lar das maiores fabricantes de automóveis - Ford, Chrysler e General Motors - que dominaram, na época, a indústria automobilística mundial.
Durante muito tempo conhecida como um polo industrial e automobilístico, a cidade passou por uma crise severa, com desemprego em alta, falta de investimentos, despovoamento e, em consequência, a falência municipal, que foi decretada em 2013.
De quinta cidade mais populosa dos Estados Unidos, em 1950 – com 1,8 milhão de habitantes -, hoje são menos de 700 mil habitantes, com 36% da população vivendo abaixo do patamar da pobreza. A cidade também abriga mais de 78 mil imóveis vazios, inclusive arranha-céus, em boa parte depredados.
Ainda em um processo de recuperação, alguns bairros começam a dar cara nova à cidade com prédios em reforma e novos moradores chegando. Como Detroit ficou barata demais, alguns investimentos começaram a surgir.
A Amazon montou um grande centro de tecnologia na cidade. Empresas como a Shinola, marca de moda masculina, passaram a produzir bicicletas, relógios, bolsas e aparelhos de som de alto luxo na cidade. Sua loja principal, localizada em uma fábrica abandonada, deu à região ares de modernidade a uma das regiões mais marginalizadas até então da cidade, onde havia um dos piores índices de crimes do país, e que agora é rodeada por cervejarias, restaurantes e lojas modernas.
Outras ações interessantes, como as fazendas urbanas, são importantes para a população local. Neste caso, os terrenos baldios entre as casas de bairros abandonados são usados para a produção de alimentos de forma verticalizada e indoor. E embora o próprio governo local não a considere uma atividade economicamente relevante pela cidade - pela baixa geração de vagas de emprego -, esse projeto ajuda a população, pois gera alimento mais barato e mais fresco do que no supermercado, e, principalmente, tira aquela cara de abandono da região.
Nesse movimento, na última década, a cidade também se tornou alvo de projetos urbanísticos baseados em um zoneamento de uso misto para fazer dali uma nova realidade. Muitos jovens têm promovido o renascimento de alguns bairros com projetos de arte - música, pintura, esculturas, fotografia e moda, que abrem novas possibilidades na cidade.
Também parte desse movimento, a Gucci é uma das raras marcas de luxo a operar lojas independentes fora das grandes metrópoles. Desde 2019, a marca analisa dados dessa geolocalização por meio do programa Gucci Changemakers, criado para fomentar uma nova era de jovens diversos na indústria da moda - apoiando e dando visibilidade para criatividade encontrada na cidade. Exemplo disso é a transcrição na fachada da loja de uma das estrofes da poetisa local Jessica Care Moore, que criou um poema original que incorpora a missão da marca em Detroit.
Depois de tanto estudo, a marca entendeu que mesmo com seus principais endereços comerciais na ruína, a cidade precisava de algo majestoso para atrair outros negócios ao centro da cidade.
A boutique abrange mais de 3,5 mil metros quadrados e exibe uma ampla coleção de roupas e acessórios masculinos e femininos, joias, relógios e decoração Gucci. A marca encontrou um alinhamento natural com a cidade e sua cultura.
Preservando a arquitetura histórica do imóvel em que se instalou, a nova luxuosa Casa da Gucci apresenta azulejos de vidro restaurados e trabalhos geométricos em metal na fachada que se estendem por todo o interior.
Pisos monocromáticos com padrões personalizados espelham os painéis geométricos da fachada, produzindo efeitos decorativos tridimensionais, integrando-se com a forma das luminárias cilíndricas e em LED para monitorar e promover a eficiência energética.
Além de pressionar o mercado como um todo por uma representação mais forte em endereços independentes, a Gucci também tenta chamar a atenção da indústria da moda por meio de relacionamentos com organizações sem fins lucrativos.
Outra ação local da marca é o apoio a estudantes de instituições como a Cass Tech High School, a escola pública mais antiga da cidade. A Gucci também trabalha ações de visibilidade da economia criativa encontrada na cidade, como, por exemplo, ao ter encomendado um filme — Jenn Nkiru's Black to Techno (2019) — que celebrava o Techno (ritmo musical) como uma forma de arte típica de Detroit.
São ações que de certa forma integram a população nessa retomada e que já trazem repercussões importantes para a região. Detroit foi nomeada um dos melhores lugares do mundo pela TIME em 2022 e seu futuro econômico é descrito como resiliente mesmo enquanto navega pelas consequências do covid-19.