Dívidas e conflito levam grupo Boticário e franquia à Justiça
Izabel Litieri (foto), dona da Hannan, diz que a decisão do grupo de suspender o abastecimento para suas 14 lojas contribuiu para sua empresa acumular dívida de quase R$ 40 milhões

Quem passar pela loja da rede O Boticário do shopping Bourbon vai ficar surpreso. Em vez de cremes, xampus, perfumes e produtos para maquiagem, as prateleiras estão repletas de caixas vazias.
Desde o final do ano passado, essa e outras 13 lojas operadas pela Hannan Comércio de Produtos Naturais, Perfumes e Cosméticos não recebem mais produtos da marca.
A parceria de pouco mais de 30 anos entre a rede O Boticário e a Hannan, que chegou a ser uma das principais franquias da marca do país, está em xeque na Justiça.
“Estou vivendo um pesadelo. Nunca pensei passar por essa situação. Ajudei o grupo O Boticário a crescer”, afirma, em tom de desabafo, a franqueada Izabel Cristina Litieri, 61 anos, dona da Hannan.
A parceria se estendeu também para fora do Brasil. Izabel chegou a manter três lojas da franquia em Portugal, onde morou para tocar o negócio, que, depois, acabou sendo vendido para o próprio grupo.
No ano passado, a boa relação de mais de três décadas entre as duas empresas chegou ao fim.
No dia 22 de outubro de 2015, o grupo O Boticário, fabricante de cosméticos, enviou uma notificação para a Hannan, dando um prazo de 20 dias para o fechamento de 14 lojas operadas pela franquia.
Em resposta, a Hannan optou por entrar com uma ação contra o grupo na 44ª Vara Civil do Fórum Central de São Paulo na tentativa de assegurar a continuidade do negócio.
O juiz Gastão Toledo de Campos Melo, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, concedeu, em novembro passado, decisão favorável à Hannan. O Boticário recorreu.
Recentemente, um colegiado formado por três desembargadores do TJ de São Paulo entendeu que esse processo deve agora correr em Curitiba (PR), onde está baseada a matriz de O Boticário. Ali tramita uma ação do grupo contra a Hannan, que objetiva reconhecer a licitude do rompimento do contrato.
“Sou parceira da marca há 33 anos. Comecei quando o Miguel Krigsner [o fundador da empresa] vinha para São Paulo e fazia reuniões na casa da minha irmã", diz Izabel. "Sei que tudo é negócio, que a veia comercial prevalece entre franqueador e franqueado, mas o grupo poderia ter sido mais flexível em nosso caso.” Parentes da família Litieri também possuem franquias da marca.
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PASSO MAIOR DO QUE A PERNA
O problema de Izabel começou em 2012, justamente quando a Hannan estava em franca expansão, principalmente devido ao sucesso da venda direta da marca.
“Entre venda direta e as 14 lojas, minha empresa vendia cerca de R$ 55 milhões por ano. Comprava R$ 2 milhões em produtos da marca por mês. Era bastante. Havia condições de expandir o negócio.”
O escritório da franquia estava até então localizado na Rua Pedroso de Moraes, em Pinheiros, bairro da zona oeste paulistana.
Com as vendas em alta, Izabel achou que era a hora de se transferir para um espaço capaz de abrigar um estoque maior de produtos e atender de forma mais estruturada o novo canal de vendas.
Um prédio com quase 3 mil metros quadrados, com 38 vagas de estacionamento, na avenida Jaguaré, parecia o local perfeito para atender as 3.500 colaboradoras.
Para adquirir o prédio e fazer as reformas para abrigar o estoque de mercadorias e torná-lo com a cara da marca, o investimento estimado era da ordem R$ 16 milhões.
Izabel chegou a consultar o grupo O Boticário que, segundo afirma, deu sinal verde para que ela expandisse o negócio.
Em novembro de 2013, o imóvel foi inaugurado com pompa, com a presença de Artur Grynbaum, presidente do grupo.
O que Izabel não previa é que o crédito que precisava para pagar parte do investimento começaria a ficar mais difícil e mais caro no país. A crise já começava a dar sinais.
“Começou a me dar um desespero tão grande por não conseguir financiamento que procurei ajuda do grupo. Cheguei a oferecer o imóvel para eles, mas eles não quiseram”, diz.
A Hannan começou a atrasar as prestações, o que, de acordo com ela, nunca havia acontecido. “Cheguei a ir quatro vezes para Curitiba, mas não consegui falar com o Grynbaum, só com diretores da empresa.”
O desentendimento entre a Hannan e O Boticário foi ficando cada vez mais difícil a ponto de o grupo exigir, a partir de abril do ano passado, pagamento à vista dos produtos. Izabel não concordou.
Na ação que move contra o franqueador, a Hannan menciona que a decisão da empresa de limitar e, depois, suspender o fornecimento de produtos foi uma forma de “asfixiar financeiramente” a franquia, atingindo ‘em cheio’ o fluxo de caixa.
Cita ainda que “há um claro movimento” da rede O Boticário de “forçá-la a entregar o seu negócio para que o grupo siga explorando diretamente os pontos comerciais prospectados e estruturados pela franqueada.”
O bloqueio de fornecimento, de acordo com a ação, fez o faturamento da Hannan cair 33% em julho, 41% em agosto e 58% em setembro de 2015 em relação aos mesmos meses de 2014.
“Como uma franquia pode vender se não tem produto?”, indaga Izabel, lembrando que o grupo limitou, no ano passado, o fornecimento de produtos um pouco antes do Dia das Mães, justamente em uma época em que o faturamento das lojas cresce.
A franqueada admite que pode ter dado um passo maior do que a perna, em 2012, quando decidiu ir para um novo prédio. Reconhece ainda que pode ter ocorrido erros na gestão do seu negócio.
Mas entende que a falta de apoio do franqueador, que tem contato com ela durante décadas, acabou colocando sua empresa em uma situação ainda pior. Na ação, a Hannan menciona que, de 2001 a 2015, acumulou pagamentos para o grupo O Boticário de R$ 44 milhões, somente a título de taxa de franquia.
ENDIVIDAMENTO
As dívidas da Hannan somam cerca de R$ 38 milhões, das quais R$ 24 milhões são com o grupo, R$ 10 milhões com instituições financeiras e R$ 2 milhões com funcionários. Em alguns desses valores não estão incluídos juros e a fração do INSS dos funcionários.
Há cerca de cinco meses a loja está devendo também aluguéis e condomínio para os shoppings e donos de imóveis. “Estou tentando passar os pontos, mas o país está em crise.”
Com a ação, a Hannan quer que a Justiça decida pela continuidade da relação comercial entre as partes e que a sua empresa possa fazer pagamentos parcelados para o grupo, como sempre fez.
Essa seria uma forma, na avaliação de Izabel, de a sua rede voltar a gerar caixa para poder quitar as dívidas, inclusive com a rede.
Em 2012, a Hannan chegou a ocupar a sétima posição no ranking das maiores franquias da rede no Brasil e a segunda no Estado de São Paulo. O bom desempenho da franquia foi elogiado em e-mails enviados pelo grupo.
“Os 160 funcionários, que trabalham há 20 anos na Hannan, estão chorando comigo. Não dá para acreditar que a empresa que vendia tão bem acabou.”
Izabel entende que a queda de consumo não teve tanto impacto em suas lojas: “Se afetou, foi pouco. A marca O Boticário é muito forte.”
As atitudes do grupo O Boticário, no entendimento de Bruno Costa, advogado do escritório Bruno Calfat, que defende a Hannan, demonstram que o grupo quer “claramente administrar os pontos da Hannan.”
“Se o produto não chega, a loja não fatura, não paga. Isso vira uma bola de neve. Essa atitude da marca já se apresentou em outros locais do país”, afirma ele.
Procurado pelo Diário do Comércio, o grupo O Boticário limitou-se a informar, por meio se sua assessoria de imprensa, que “o contrato da franqueada foi rescindido legitimamente, nos termos da relação contratual existente entre as partes”.
A nota acrescenta que, “em respeito aos termos do contrato, à rede de franqueados e ao poder Judiciário, o grupo não comenta casos que estejam em discussão no Judiciário."
Izabel diz que, para que outros franqueados não passem pela mesma situação que ela, é preciso ler atentamente o contrato entre franqueador e franqueado.
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Mais do que isso. “Achei que uma relação de amizade de tantos anos pudesse prevalecer neste momento, mas não foi o que aconteceu".
A Hannan vai continuar buscando na Justiça o direito de voltar a vender os produtos da marca, que considera a única alternativa possível de quitar suas dívidas.
Izabel Litieri, dona da Hannan, e Artur Grynbaum, presidente do Boticário

Placa marca inauguração de novo prédio da Hannan, em 2013

Prateleiras eram usadas para estocar produtos

Amostra de produtos para a venda direta

Sala era usada para atender colaboradoras da venda direta

Loja do Bourbon não tem mais produtos e deve fechar em breve

Fachada do novo prédio da Hannan, inaugurado em 2013
