De novo o ‘Código dos Homens Honestos’

'Muita coisa nova que estamos discutindo nos dias de hoje, não são assim tão novas'

Marcel Solimeo
04/Set/2024
Economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo
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De novo o ‘Código dos Homens Honestos’

Plus ça change, plus c’est la même chose

Essa expressão francesa, que em tradução livre significa que “quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas”, e que o Guilherme Afif traduzia como “de novo, só o que foi esquecido”, me leva, frequentemente, a recordar haver lido no pequeno número de livros que conservo em casa (o grande número que adquiri ou ganhei nesses mais de 60 anos encaminho à Biblioteca) episódios reais ou literários semelhantes aos que estamos vivendo.  

Tem sido recorrente a lembrança de um deles, o “Código dos Homens Honestos", de Honoré de Balzac, cujo título parece indicar tratar-se de um Manual de Conduta para os homens de bem. O subtítulo, no entanto, mostra seu real objetivo, “A Arte de não se deixar enganar pelos larápios”, partindo de um tema recorrente em suas obras, o dinheiro, ou melhor, os que têm dinheiro e os que não têm, e as diversas formas que os segundos procuram se apropriar dos recursos daqueles que têm.

Vários acontecimentos recentes, que mencionarei adiante, estão descritos de forma satírica no livro de Balzac. Ele considera que o dinheiro é fonte de prazeres, poder e posição social, para aqueles que o ganharam legalmente, e é a origem das disputas com aqueles que desejam conseguir, pelo menos parte desse dinheiro, através de golpes, roubos e outras armadilhas.

Trata-se, então, de um Manual para alertar os que têm dinheiro, das diversas formas utilizadas pelos larápios, ladrões e golpistas de diversas modalidades que os ameaçam, além de outras formas como a filantropia e, até, as coletas dominicais. Menciona os governos, com seus impostos indiretos, contra os quais não tem defesa, e tece críticas à dívida dos governos, embora não mencione explicitamente que no fim será paga pelos cidadãos.

Em suas “Considerações políticas, filosóficas, legislativas, religiosas e orçamentárias, sobre a COMPANHIA DOS LADRÕES”, o presidente do Sindicato da Categoria, em sua Assembleia Anual, mostra que os ladrões constituem uma classe especial da sociedade, e que movimentam as engrenagens da economia, pois geram muitos empregos. A polícia, a Justiça, os advogados, as prisões e seus funcionários, representam uma parte do orçamento, e respondem pela existência de milhares de empregos. Na literatura estão presentes em milhares de romances. Formam uma república que tem suas leis e seus costumes: não roubam uns aos outros.

Após declarar aberta a Assembleia do Sindicato dos Ladrões com um brinde ao Rei, o presidente manifestou sua alegria por fazer parte de uma categoria tão numerosa e respeitável, e que o objetivo da reunião está ligado aos interesses mais significativos da profissão.

Declarou que os honestos e, sobretudo os ladrões, não devem criticar às leis que protegem a propriedade, pois dão ao público uma falsa sensação de segurança. Sem essas leis, todos os homens ficariam em guarda, e prontos a punir imediatamente o ladrão apanhado em flagrante delito. “Sem essa proteção das leis, da polícia e da Justiça, todos os homens estariam prontos a nos punir e, ao invés da prisão, poderíamos ser recebidos por um tiro de pistola”.

Continuou sua defesa das leis, afirmando que as punições que nos sãos destinadas assemelham-se aos impostos pesados com que o Parlamento taxa as mercadorias muito caras. Bendigamos ao legislador que declarou que antes de nos castigar era necessário provar o delito” e conclui.  “Além disso, como sabem, um documento não mencionado num processo, o erro de um escrivão, a sutileza dos advogados, tudo nos salva”.

Esse trecho nos faz pensar em como é a situação no Brasil. O risco do “tiro de pistola” é baixo porque o governo vem desarmando os cidadãos de bem. Além de desarmarem os cidadãos, certos grupos querem também desarmar a polícia, o que nem o sindicato dos LADRÕES defendeu. As punições são leves, a não ser no caso de tentativa de “golpe” real ou imaginária, onde não valem também as garantias dadas pelos legisladores da necessidade de se provar o delito antes da prisão.

Como último item da pauta, o presidente propôs que os presentes   discutissem a possibilidade de o Sindicato comprar um terreno para o mais ilustre do grupo e o fazer membro do Parlamento, para que lá possa defender nossos direitos e interesses. Posta em votação, a proposta foi aprovada por unanimidade, com o que foi encerrada a Assembleia.

Na verdade, o primeiro ponto que me fez lembrar desse trecho do Código, foi a notícia de que os órgãos de segurança detectaram atuação de grupos organizados para influenciar nas eleições, especialmente nos municípios, visando facilidades nas concorrências e compras públicas. Embora esse fato já fosse comentado há muito tempo, parece que agora a escala é muito maior.    

No capítulo segundo, Balzac trata das “contribuições voluntárias forçadas angariadas nos salões pelas pessoas de sociedade”, apresentando as várias formas de arrancar dinheiro por meio de contribuições para diversas finalidades, inclusive pela via fiscal, que são as mais perigosas para o patrimônio”.

Cita “os governos constitucionais e suas dívidas intermináveis”, que não são vistas pelas pessoas. Considera difícil classificar os impostos indiretos, no qual o apelo aos bolsos tem sempre a forma tal, que a consciência violentada protesta sorrindo e que está no limite que separa o justo do injusto”.

O déficit público e “as dívidas intermináveis” também estão na ordem do dia, na medida em que o arcabouço fiscal está longe de ser cumprido, aumentando o endividamento do governo. Com relação aos impostos indiretos ainda existem muitas dúvidas sobre como vão ficar com a reforma tributária e a criação de vários Fundos federais, que deverá aumentar a “dívida pública”.

Balzac descreve depois várias modalidades de apelo aos bolsos, como coletas, rifas, a filantropia, e outras, como gorjetas, que, “apesar de voluntárias, quase se tornam obrigatórias”.

No livro Terceiro apresenta as “Indústrias Privilegiadas”, que na verdade são atividades de serviços, como cartórios, advogados, corretores de câmbio, casas de penhores, que encarecem as operações. Destaca, especialmente, as casas de jogo, que, segundo ele, “nunca alguém ganhou nessas casas infames... e a mais funesta das paixões traz com ela a ruína total daquele que é por ela dominado”. Há dez anos em cada sessão legislativa, vozes enérgicas protestam contra a imoralidade destas rendas... Ministério deveria ouvir os gritos dos infelizes que perderam nas casas de jogo, e a voz patriótica dos legisladores que querem pôr termo a um escândalo que desonra a nação”.

Volta a esse tema ao final do livro, dizendo que “um ministério que se arma em defesa da religião, da moral, que faz leis contra os sacrilégios, e desce a saia das bailarinas da ópera, deveria ouvir os gritos dos infelizes que se perderam nas casas de jogo, e a voz patriótica dos que querem pôr termo a um escândalo que desonra as nações”.

Esse é um tema que está na ordem do dia no Brasil. Sem entrar no mérito do debate sobre o jogo, que é assunto muito antigo que começou com a proibição dos cassinos e se estendeu depois ao popular “jogo do bicho”. O objetivo aqui é mostrar que assuntos que parecem novos, já foram discutidos em 1825, data do livro de Balzac.

Quando se deu a proibição do jogo do bicho, que passou a ser considerado contravenção penal, se argumentava que havia contradição entre essa medida e a exploração pelo governo, da Loteria Federal. O argumento a favor era o de que, como a loteria era pública, o governo poderia controlar melhor seu funcionamento.

Como o jogo do bicho era muito popular, continuou funcionando na clandestinidade (aparente, pois exigia divulgação dos resultados). Interessante que se considerava absolutamente seguro apostar no bicho, recebendo um papelzinho sem timbre ou qualquer identificação, pois havia um “sistema” para garantir que ninguém desrespeitaria o que estava escrito. Não é o local para se discutir esse “sistema”, mas valeria a pena conhecer.

Embora continuem funcionando as loterias sob controle da CEF, e a cada dia surge mais uma, o que segundo alguns estudiosos, drena valores vultosos do consumo, o que está sendo aprovado agora é a abertura do jogo sem controle, mas com o qual o governo, “docemente constrangido”, vai arrecadar imposto sobre o vício, mas, ao mesmo tempo, afirma querer reduzir outros vícios com o Imposto Seletivo.

Muitos outros pontos interessantes poderiam ser destacados do Código, mas mencionar todos, tornaria muito longo esse texto, cujo objetivo é apenas despertar a curiosidade em relação ao livro, que contém muito mais pontos de interesse, que refletem a forma satírica e o humor do autor e, principalmente, mostrar que muita coisa nova que estamos discutindo nos dias de hoje, não são assim tão novas.

Desde 1825 o mundo mudou, mas muitas coisas parecem continuar as mesmas.

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IMAGEM: Freepik

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