'A Previdência é uma nova bomba atômica'
Para desarmá-la, Guilherme Afif Domingos propõe a troca da base de arrecadação, hoje concentrada na folha de salários e contribuição patronal, por um imposto sobre transação financeira
A lei que criou o MEI (Microempreendedor Individual) completou no final do ano passado 15 anos. Hoje, são cerca de 15 milhões de inscritos, confirmando as previsões iniciais de um milhão de novos empreendedores por ano. Volta e meia, a figura jurídica desenhada em 2008 para reduzir os altos índices de informalidade é alvo de críticas.
Recentemente, o economista Hélio Zylberstajn, professor da FEA/USP, afirmou em uma entrevista que a contribuição mensal de cerca de R$ 70 reais dos MEIs não cobre a aposentadoria de um salário mínimo a que eles têm direito, caso cumpridas as regras previstas na legislação, como a carência de 180 meses de contribuição e idade. Na visão do economista, o avanço do número de empreendedores é uma “bomba-relógio atômica” para a Previdência.
Para o mentor intelectual da figura jurídica que tirou milhões de pessoas da informalidade, Guilherme Afif Domingos, hoje secretário de Projetos Estratégicos do Governo do Estado de São Paulo, a Previdência é que é uma “nova bomba atômica”.
Para desarmá-la, Afif propõe a troca da folha de salários como base de arrecadação por um imposto sobre transação financeira. “O modelo atual é obsoleto e deixou de ser efetivo em termos de arrecadação diante das novas formas de contratação e das relações de trabalho”, diz.
Em entrevista ao Diário do Comércio, Afif Domingos fala dos efeitos positivos de uma eventual desoneração da folha de salários para o setor de serviços, o mais prejudicado pela reforma tributária, das peculiaridades do MEI e defende a atualização dos limites do regime do Simples Nacional, o preferido das empresas não pela tributação aparentemente mais baixa, mas pela simplificação proporcionada. Confira a entrevista:
Diário do Comércio - Como o senhor vê as recentes declarações feitas pelo economista Zylberstajn envolvendo a figura do MEI?
Guilherme Afif Domingos – É preciso analisar o histórico da legislação desde o início. A contribuição do MEI estava prevista para ser da ordem de 11% sobre o salário mínimo. Na época, a Dilma Rousseff, numa atitude bastante corajosa, com objetivo de obter uma maior adesão, baixou para 5%. De fato, a informalidade naquela época era muito mais alta do que os níveis atuais. Agora começam a fazer contas e a olhar a relação custo-benefício. Hoje são cerca de 15 milhões de MEIs, o que mostra que houve uma efetiva adesão. A questão é que a arrecadação do MEI é mutável. Se há melhora na economia e as pessoas conseguem um trabalho de carteira assinada, elas simplesmente deixam de recolher a guia do MEI.
O cidadão torna-se MEI para complementar a sua renda ou para desenvolver e dar continuidade a algum negócio. Por essa razão, a inadimplência do MEI chega a 50%. Acho que qualquer mudança que implique em correção da alíquota, corre-se o risco até de reduzir o ritmo de adesões. Ou só vai ficar quem efetivamente tem no MEI a sua atividade principal. A verdade é que a Previdência, independente do MEI, é a “nova bomba relógio”.
Acha que a legislação do MEI precisa ser atualizada depois de 15 anos da sua publicação?
Acho que o MEI deve ser universalizado. Ainda há restrições sobre as atividades que podem ser abarcadas na legislação, muitas vezes sob a alegação equivocada de que o MEI é uma porta para a precarização nas relações de trabalho. Daí as interferências burocráticas que, em vez de beneficiar, complicam.
Portanto, deve ser universal em termos do porte da atividade, do faturamento, como prevê a Constituição Federal. Hoje são mais de 300 atividades permitidas, mas a Receita tem o poder de determinar quem pode ou não entrar.
E sobre os limites de faturamento do Simples Nacional, que há muito tempo não são reajustados, o que leva as empresas a realizarem planejamentos tributários para escapar do aumento de custos com impostos?
No passado, conseguimos implementar uma espécie de rampa de acesso, com escalonamento de alíquotas, como é feito com o Imposto de Renda, para que a transição do regime de tributação seja mais suave. Há críticas de que o limite de faturamento é altíssimo, o mais alto do mundo. Mas quando o mundo estabelece os limites, trata também da isenção de impostos, o que não acontece no Brasil.
No nosso caso, as empresas do Simples pagam imposto e pagam muito bem, pois a tributação é cumulativa. Esse regime tributário é uma simplificação da forma de recolhimento, que é a salvação da lavoura. O que mata a pequena empresa é a burocracia fiscal. Hoje, as empresas do Simples pagam mais do que as empresas do lucro presumido ou real, proporcionalmente. Aí, os Estados estabelecem limites.
Outra excrescência foi a diferenciação de tetos nos âmbitos federal e estadual, sob o risco de os Estados não aprovarem o último limite negociado no Congresso, de R$ 4,8 milhões.
Com o aumento do limite, não se perde um pouco da essência da lei, que é de proteção aos pequenos negócios, já que as grandes podem se valer de um teto alto e ingressar no sistema?
O sonho de qualquer empresa é ficar no Simples, não pela tributação, mas pela simplificação que o sistema oferece. Hoje, as empresas com faturamento maior pagariam praticamente a mesma coisa em impostos caso estivessem no regime do lucro presumido. Elas fazem a opção para fugir da burocracia fiscal gerada nos outros regimes tributários.
Voltando à questão da Previdência, como solucionar o seu rombo histórico e crescente?
Sempre defendi a mudança da base de tributação da Previdência, saindo da folha de pagamento, cuja base de cálculo deixou de ser efetiva, para o campo da transação financeira. O modelo atual é obsoleto diante das novas formas de contratação e de relações do trabalho. A substituição vai proporcionar uma arrecadação muito mais robusta, menos onerosa em termos de custos de arrecadação, de forma a livrar a folha de pagamentos da oneração de Previdência, tanto patronal como do trabalhador.
E essa mudança aliviaria fortemente o setor de serviços, o grande prejudicado com a criação do IVA na reforma tributária, pois tem na mão de obra o seu maior custo. Portanto, sem esse custo, haveria um equilíbrio da tributação entre a indústria e o setor de comércio e serviços. Só quando for conhecida a alíquota do IVA, teremos a noção de como esses setores serão prejudicados. Então, a mudança da base de tributação é fundamental para manter a Previdência bem alimentada.
O problema é que esbarramos na questão da resistência da sociedade à criação de tributos nos moldes da CPMF. Como o senhor vê essa questão?
A resistência está concentrada no setor financeiro. Isso porque o imposto sobre transação vai atrás do fluxo de dinheiro e, com isso, descobre-se o que não se quer. O problema é que a vida da CPMF durou pouco mais de 10 anos e teve resultados extraordinários, com uma potência arrecadadora inimaginável. Esperávamos que ela substituísse alguns impostos, mas isso não aconteceu.
A contribuição acabou se tornando o quinquagésimo imposto da nossa imensa constelação tributária e veio a se sobrepor aos demais impostos, em vez de substituir algum ou alguns impostos. Foi uma discussão mal colocada na época, pois o governo do Fernando Henrique, que usou o prestígio do Adib Jatene, então ministro da Saúde, para implantar o imposto destinado exclusivamente para a área da saúde, acabou usando os recursos para manter o Leviatã, que é o Estado brasileiro.
O senhor acha, então, que a ideia de ressuscitar um imposto sobre transação financeira em substituição à tributação na folha de forma integral seria mais aceita hoje, pois traria também um alívio para o setor de serviços?
Talvez. A regra deve ser: a arrecadação da Previdência será lastreada pelo recolhimento de um imposto sobre transação, o que vai permitir seguir o fluxo do dinheiro circulante. Com isso, inclusive, será possível taxar essa economia digital que ninguém consegue ver como funciona, pois, a rapidez da transação é muito grande, é mundial.
Então, uma ferramenta capaz de apontar o fluxo do dinheiro vai proporcionar uma arrecadação robusta, além de taxar setores que não estão sendo enxergados. Sobre a reforma tributária, a conta ainda não chegou, pois desconhecemos o valor da alíquota. Certamente o setor de serviços será o grande prejudicado porque é o que mais emprega atualmente e tem na folha de salários o seu maior custo.
IMAGEM: ACSP/divulgação