A nova encarnação dos açougues paulistanos

A demanda por produtos de melhor qualidade, com origem conhecida, criou oportunidade para a expansão dos negócios com marcas e lojas próprias, como a do Empório No Ponto (foto)

Fátima Fernandes
05/Fev/2015
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A nova encarnação dos açougues paulistanos

Faz tempo que a indústria alimentícia, em busca de diferenciação, batiza e investe fortunas na publicidade de commodities. É o caso, por exemplo, do arroz Tio João, açúcar União, café Três Corações, farinha Dona Benta, só para citar alguns.

Mas o país que é o maior produtor e exportador de carne bovina do planeta não possuía, até recentemente, grandes marcas de carne in natura. Isso está mudando.

Com faturamento anual da ordem de R$ 100 bilhões, a Friboi, empresa do grupo JBS, maior processadora de carnes do mundo, identificou uma oportunidade para fazer do nome da companhia uma marca conhecida para diferenciar seus produtos de concorrentes. Principalmente daqueles que não respeitam as boas práticas sanitárias e ambientais para a criação e o abate do gado.

Para tanto, escalou uma celebridade global capaz de inspirar confiança. A empresa levou quase um mês para convencer Tony Ramos a protagonizar uma campanha, iniciada há dois anos, agora em nova fase no ar.

Ao perguntar nos comerciais “é Friboi?”, o ator ajudou a elevar em 30% as vendas de carne da companhia no primeiro ano. Um levantamento do Ibope em outubro de 2014 revelou que a marca foi mencionada por 75% dos resultados, mais do que o dobro da pesquisa conduzida em junho de 2013 (35%).

“Criamos uma marca para as massas e, com isso, abrimos um flanco para as carnes premium”, afirma Márcio Oliveira, presidente da agência Lew Lara de publicidade, criadora da campanha da Friboi.

COMERCIAL COM TONY RAMOS: CAMPANHA ELEVOU VENDAS DA FRIBOI EM 30%

 

Coincidência ou não, na mesma época começaram a ser veiculadas na mídia reportagens sobre as más condições de dezenas de abatedouros espalhadas pelo interior do Brasil. As imagens das áreas insalubres em que são abatidos milhares de bois por ano chocaram as donas de casa.

Essas matérias, aliadas às notícias de que a expansão da pecuária contribui para o desmatamento na Amazônia, despertam cada vez mais a consciência dos consumidores, abrindo, portanto, o caminho para as marcas premium.

Não foi somente a líder do setor que viu esta oportunidade. Novos empreendedores e donos de pequenos açougues pegaram carona no comércio de carnes premium com marca própria.

Os paulistanos já devem ter notado algumas dessas lojas por aí, principalmente nos bairros de maior poder aquisitivo. São modernas, aconchegantes, bem decoradas, diferentes dos tradicionais açougues, sem luxo e acostumados a exibir enormes peças de carnes nos balcões. É um movimento de transformação que faz lembrar a transformação de padarias, ocorrido anos atrás.

Empório No Ponto, The Butcher e Feed, todas localizadas na zona Sul de São Paulo, são alguns exemplos. Elas oferecem carnes de melhor qualidade em dezenas de cortes, como T-bone, Chorizo, Ancho, Prime Rib, Bombom da Alcatra, Bananinha, e proclamam que seus produtos não possuem semelhança com os vendidos em supermercados ou nos açougues tradicionais.

Essas marcas de nicho do varejo de carne convivem hoje com um mercado disputado por 17 mil açougues paulistas, que, em sua maioria, faturam até R$ 240 mil por ano, conforme estima o Sindicato do Comércio Varejista de Carnes Frescas do Estado de São Paulo.

O apelo deste novo comércio consiste em revelar ao cliente a origem dos produtos, por meio de rastreamento --seu percurso desde a fazenda, prestando a atenção, inclusive, na questão ambiental. Os proprietários participam da seleção dos animais nas fazendas e acompanham o processo de criação do gado, da engorda e abate, além da desossa, cortes nos frigoríficos e envio dos produtos até a loja.

Para que o consumidor conheça a origem da carne, a rastreabilidade é fundamental. Há várias empresas especializadas com atuantes no país. Uma das pioneiras é a Safe Trace, fundada em 2005, que utiliza tecnologia de identificação do gado por radiofrequência.

Além de todo este acompanhamento, que vai do pasto até o ponto de venda, as novas lojas não trabalham com a carne do gado brasileiro Nelore, aquela que é a mais vendida em supermercados e açougues convencionais. Procedem de raças mais nobres, de origem europeia, como Black Angus, Red Angus, Hereford, e Bonsmara (África do Sul).

Para que a carne tenha melhor qualidade, os animais são abatidos ainda jovens, com 24 a 26 meses de idade. E nos últimos 30 a 40 dias de vida, passam por um processo de engorda rápida para criar gordura, o que faz com que a carne seja mais saborosa.

PÚBLICO-ALVO
As novas casas de carnes despontam de maneira semelhante às cervejarias artesanais e aos cafés gourmet: para atender um público mais exigente, que está disposto a pagar um pouco - ou muito mais-  para escapar do produto de massa. Os preços são, em média, 15% superiores aos dos açougues convencionais.

O público-alvo são, principalmente, aqueles consumidores que gostam de reunir os amigos em casa para um churrasco no final de semana e buscam oferecer aos convivas uma carne com qualidade, diferenciada, mais saborosa e macia. São pessoas que já viajaram para fora do país, especialmente para a Argentina e o Uruguai, e conhecem uma carne de boa qualidade.

Se depender do apetite do consumidor para carnes, investimentos neste mercado tendem a dar retorno. De 2013 a 2018, o consumo de carnes frescas no Brasil deve crescer 15,5% anuais, acima da média mundial (13,4%), de acordo com projeções da Euromonitor.

Esse levantamento considera as carnes bovina e de vitela, de cordeiro, carneiro, cabra, porco e aves. A previsão é que, em 2018, o consumo dessas carnes atinja 268,14 milhões de toneladas no mundo e 23,34 milhões de toneladas no país.
Significa que, mesmo com as projeções negativas para o mercado de consumo no Brasil, o setor de carnes não deve sofrer um baque tão forte.

O brasileiro consome cerca de 35 quilos de carne bovina a cada ano. Neste quesito somente é superado por argentinos e uruguaios, com cerca de 60 quilos per capita.

Estimulado pelo potencial do mercado de carnes especiais, Dennis Perlman e dois amigos desembolsaram cerca de R$ 600 mil para abrir, em maio do ano passado, a The Butcher (o açougueiro, em inglês).

A loja, inspirada em açougues da Austrália e de Londres, oferece cerca de 150 itens, incluindo suínos, cordeiros e até animais de caça. “O brasileiro estava muito acostumado com picanha e filé mignon. Só que o boi possui mais de 50 cortes e alguns deles são até mais saborosos e mais baratos do que essas carnes”, afirma Perlman, que já operava no varejo.

LOJA DA THE BUTCHER: 150 ITENS EXPOSTOS

 

“BOI DE PRIMEIRA NÃO TEM CARNE DE SEGUNDA”

Uma das grandes novidades dessas novas casas de carnes é dar ênfase para os cortes da parte dianteira do boi, conhecidos no Brasil como carnes de segunda. E, neste caso, há cortes excelentes, como o Shoulder ou Raquete, campeão de vendas, e o Bananinha, uma carne mais gordurosa, com sabor e com bom preço (R$ 32,90 o quilo), de acordo com Perlman.

“Boi de primeira não tem carne de segunda”, diz Pedro Merola, dono da Feed, loja que acaba de completar um ano. Merola, que pertence a uma família que cria gado há quatro gerações, sonhava com um negócio que envolvesse desde a produção da carne até a venda para o consumidor. Em janeiro de 2014, conseguiu realizá-lo.

LOJA DA FEED: CRIADORES DE GADO INGRESSAM NO VAREJO

 

A abertura da sua loja foi quase um processo natural, assim que constatou que já havia mercado no Brasil para as carnes especiais. A Feed é especializada em carne de gado Bonsmara. No passado, a loja comercializou um lote de carne acompanhado pela ONG Aliança da Terra, que oferece assessoria sobre as práticas socioambientais ligadas à produção.

A oferta de carne sem marca em supermercados e açougues não é uma particularidade do mercado brasileiro. Está generalizada no mundo. “Nos Estados Unidos, por exemplo, a carne não tem marca porque a qualidade é uniforme”, afirma Francisco Gracioso, decano da ESPM e autor de quase uma dúzia de obras sobre marketing. “No Brasil, ao contrário, a maior parte da carne tem qualidade duvidosa. É exatamente por isso que se abriu um espaço para as marcas premium.”

O que está ocorrendo neste mercado, segundo afirma, tem dupla explicação. “Primeiro surgiu a demanda e, depois, a oferta. E, sem dúvida, a campanha da Friboi, com a participação do Tony Ramos, alertou o consumidor sobre a importância da carne de boa qualidade.”
A compra da norte-americana Swift pela JBS, em 2007, por US$ 1,4 bilhão, contribuiu para incentivar o mercado de carnes premium, com a linha Swift Black. Coube à JBS revitalizar a marca, presente no Brasil desde 1917.

No passado, a Swift foi uma marca popularizada com seus enlatados e embutidos. Uma de suas principais inovações foi o lançamento de embalagem com chavinha, para facilitar a abertura.

Reposicionada, a marca ganha força ao estampar a fachada de cerca de 40 lojas espalhadas por São Paulo e região metropolitana, ao oferecer produtos congelados exclusivos, que passam por um processo de maturação e “tenderização”, o que torna a carne mais macia.

A JBS não comenta, porém, sobre os planos de expansão de sua rede. “Quem sabe os supermercados não estão chiando porque a Swift abriu loja própria? Este mercado é um dos mais competitivos”, diz Gracioso.

PATO, COELHO, JAVALI...

Um pouco mais velha do que a The Butcher e a Feed, a No Ponto também abriu as portas, há cerca de três anos, para disputar o consumidor que quer comer carne com qualidade todos os dias. O negócio deu tão certo que os três sócios já inauguraram um segundo ponto de venda.

Há um ano e meio, a empresa foi rebatizada para Empório No Ponto, com o objetivo de expandir a linha de produtos. A loja se especializou em venda de carne de raças britânicas, como Black Angus, Hereford, e também passou a comercializar cordeiro, pato, coelho, javali.

“Este era um mercado não valorizado no Brasil. Os produtos, em sua maioria, não tinham rastreabilidade. Isso está mudando”, diz Natalia Regina Dragoni, uma das sócias da loja.

Em pouco tempo, tanto a The Butcher como a Empório No Ponto já têm planos para expansão. “Devemos abrir novas lojas, um restaurante e entrar em franquias”, diz Perlman, da The Butcher.  A No Ponto já estuda um modelo de franquia para ir, primeiramente, para o interior do Estado de São Paulo e, depois, para Bahia, Minas Gerais e Mato Grosso. 

Laszlo Wessel, fundador da casa de carne Wessel, foi o primeiro a comercializar carne com marca no Brasil, em 1958. Por quase 20 anos, a empresa ficou praticamente sozinha neste mercado. Só em 1976 é que chegou a Bassi, de Marcos Guardabassi, conhecido por ter criado cortes como Bombom, Fraldinha e Steak do Açougueiro.

Após dominar o mercado de carnes especiais durante décadas, as duas lojas tomaram decisões importantes na década de 1990. Em 1999, a Bassi vendeu a marca, que hoje pertence à Marfrig. A família possui atualmente apenas um restaurante, O Templo da Carne, e um espaço para eventos, no bairro do Bixiga.

Em 1995, a família Wessel achou que era a hora de colocar os produtos em supermercados. Após operar seis lojas, a Wessel possui hoje só um ponto de venda, na av. Faria Lima, em São Paulo.

“Optamos por levar a marca para os supermercados porque desta forma conseguiríamos atingir muitos mais pontos de vendas”, diz Tatiana Wessel, diretora de marketing da empresa. A venda dos produtos nas redes Pão de Açúcar, St. Marche, Natural da Terra, Mambo, entre outras, garante para a Wessel um faturamento anual da ordem de R$ 60 milhões.

Para Tatiana, a empresa da sua família está na contramão das novas casas de carnes. Na verdade, segundo especialistas em marketing e branding, a Wessel está numa segunda fase em relação aos concorrentes.

A empresa, primeiramente, consolidou a marca na linha de carnes premium para, em seguida, partir para uma nova etapa: levar esses produtos premium para os pontos de venda de massa.

Para Gracioso, a Wessel está no caminho certo. “É muito difícil prever o que vai acontecer com essas novas casas de carnes e suas marcas, até porque é um tipo novo de comércio. Entendo, porém, que é difícil o consumidor sair de casa só para comprar carne e, por isso, acaba preferindo ir ao supermercado.”

Isso não quer dizer, na sua avaliação, que não haja espaço para as marcas premium. “Essa é uma tendência que veio para ficar, não é modismo. Só vai ser difícil manter um comércio deste tipo para atender um público tão pequeno”, diz. Se a análise do especialista estiver correta, a alternativa para essas novas lojas é seguir o caminho da Wessel.
 

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