A Mulher do Padre atrai o público jovem há duas décadas
Fundada em 1995, a marca paulistana que nasceu numa feira de estilistas, criou uma plataforma que se tornou referência cultural em São Paulo e sobreviveu a um incêndio que quase a levou à falência

O que faz uma marca de moda se manter relevante para o público jovem por mais de duas décadas?
Assim como acontece com astros da música, a chave para perenidade é reinvenção constante, saber contar novas história e se adaptar às ideias contemporâneas que emergem na sociedade.
O estilista Vinicius Campion soube enfrentar essa jornada. Ele é fundador de A Mulher do Padre, grife de moda criada em 1995.
A trajetória da empresa manteve uma relação simbiótica com a história recente do varejo de moda paulistano.
A AMP, como é mais conhecida pelo público, nasceu em um nicho de estilistas, que anos mais tarde se tornaria referência na moda brasileira.
Depois, a marca galgou uma expansão nacional como atacadista para multimarcas – numa época que o esse modelo de loja era a referência de consumo Brasil afora.
Ao mesmo tempo, numa expansão de negócio, a empresa desenvolveu uma plataforma de divulgação que se converteu em marco cultural na cidade.
Hoje, mais de duas décadas depois da fundação, a AMP concentra-se no atendimento de um novo público emergente: jovens criativos e conscientes, que apreciam design e usam a moda como forma de expressão.
Atualmente, a marca possui uma rede de quatro lojas na capital paulista. Há unidades na Rua Augusta, no shopping Higienópolis, na Avenida São Luis e na Vila Madalena – a última mantida em parceria com a Editora Hedra. No mesmo espaço funciona um café, um pequeno restaurante e uma papelaria.
CRIATIVIDADE NA CONTRAMÃO
A AMP teve origem nas primeiras edições do Mercado Mundo Mix, feira que reunia jovens estilistas que queriam criar uma identidade própria e vender diretamente para o público.
Além da AMP, o evento lançou nomes como Alexandre Herchcovitch, Ronaldo Fraga e Marcelo Sommer – hoje, estilistas renomados.
Numa época que as marcas apostavam em nomes com sotaque inglês, A Mulher do Padre trazia em seu batismo uma aura contestadora, que marcaria seu posicionamento ao longo de sua trajetória.
A inspiração, além do folclore, veio da brincadeira infantil em que ser a mulher do padre era um castigo. A ideia era fazer uma antimarca. Transformar o malquisto em objeto de desejo.
“Era um momento em que o criativo, o artesanal e a pequena tiragem fazia sentido e cativava os consumidores”, afirma Campion.
Devido o sucesso nas feiras, que tiveram edições em outros estados, Campion, ao lado da sócia Paula Ferrali, com quem foi casado por 22 anos, acumulou reservas para abrir a primeira loja.
O ponto escolhido foi a Galeria Ouro Fino, reduto embrião de várias marcas de moda.
Sem recursos para bancar o aluguel sozinho, Campion convidou um amigo, com que tinha uma banda de rock, para dividir a loja.
A figura era Caito Maia, fundador da marca de óculos Chilli Beans, que também dava seus primeiros passos no mundo dos negócios.
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EXPANSÃO REGIONAL E OUTROS NEGÓCIOS
Em 1999, numa outra mudança de mercado, a AMP é convidada a participar de um projeto de incubadora de marcas capitaneado pela Malwee, gigante têxtil de Santa Catarina.
A ideia era reunir marcas emergentes e criar lojas multimarcas que seriam referência para o mercado. Antes do acesso à informação digital, as lojas multimarcas serviam para divulgar no interior do país as tendências nascidas nos grandes centros urbanos.
Neste momento, a AMP inicia uma operação atacadista e passa a ser fornecedora de mais de uma centena de lojas.
Para divulgar a marca, Campion leva a AMP para a recém-lançada Semana de Moda de São Paulo, na qual participou por sete anos.
O problema é que o evento, com calendário semestral, reunia inúmeras marcas, que disputavam menções em veículos de mídia especializados. Com o tempo, o espaço diminui cada vez mais.
Em 2003, num movimento de verticalização, Campion funda a AMP Galaxy – um prédio de 2 mil metros quadrados que abrigava a sede administrativa, um clube de música eletrônica, estoque, showroom, salão de beleza e restaurante.
Posteriormente, ele também lançou uma gravadora de música e uma agência de representação de DJs internacionais no Brasil.
Nas palavras de Campion, a AMP Galaxy foi uma plataforma de divulgação totalmente disruptiva para a época. A marca expandia sua atuação além do mundo da moda e se tornava referência cultural na cidade.
O movimentou atraiu grandes marcas em projetos de cocriação. Houve linhas de mochilas com a Puma, de camisetas com a Miller e Pernod Richard e, até mesmo, uma marca AMP de suco de laranja em parceria com a Tetra Pack.
A empresa também se tornou representante exclusiva da linha Originals da Adidas – na época, a marca alemã não possuía lojas próprias no Brasil.
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A BEIRA DE FECHAR AS PORTAS
Numa das melhores fases da marca, a AMP sofreu um baque que quase a levou à falência. Em 2003, a empresa transferiu seu estoque para um galpão anexo a sua fábrica.
Durante uma pequena reforma, um serralheiro que instalava grades de proteção causou acidentalmente um incêndio que destruiu produtos e matérias-primas orçados em R$ 3 milhões (aproximadamente R$ 12,8 milhões em valores atuais).
“Ouvi a notícia no rádio e não imaginei que fosse a minha fábrica”, diz Campion. “De uma hora pra outra, perdi tudo o que tinha conquistado.”
A saída para a sobrevivência foi licenciar a marca junto a um fornecedor do Espírito Santo por quase três anos.
“Anualmente, eu desenvolvia toda a coleção da marca em seis meses na pequena cidade de Colatina, sozinho em um hotel” diz. “Foi a oportunidade de reerguer o negócio e uma grande mudança de vida.”
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REPOSICIONAMENTO DE MARCA
Após conseguir retomar o controle de todos os processos produtivos e verticalizar novamente o negócio, Campion reposicionou a marca para atrair diferentes públicos emergentes – em que muitos deles prezam por manter uma relação de cocriação com a marca e são fiéis a princípios – e não status.
Num projeto de arquitetura de marca, a AMP lançou diferentes linhas de produtos sob o mesmo guarda-chuva.
Uma delas é a Hello, uma marca de jeans em que a etiqueta é customizada com o nome do próprio consumidor.
Outra linha é a Natation Pour Tous (Natação Para Todos em francês), de biquínis e maiôs.
“Essa marca é quase uma campanha política, lembra o lema Transporte Para Todos”, diz Campion. “Traz o conceito de inclusão, que é o que acontece na praia, um espaço de compartilhamento democrático.”
Atualmente, Campion é o único responsável pelas criações da marca. Seu processo criativo consiste na observação constante de símbolos recorrentes com que se depara durante o semestre.
Histórias pontuais também podem ser referências. Um desses casos se deu quando Campion estava num aeroporto e uma pessoa furou a fila de despacho de bagagem gerando desentendimentos.
O episódio, na época, serviu de insipração e desencadeou o filme Zimmipool, que foi selecionado para uma mostra no Itaú Cultural em 2005.
De acordo com o estilista, na época, as grandes marcas apresentavam coleções inspiradas, por exemplo, na Índia e no Marrocos.
"Não acredito que essa seja a melhor forma de devolver ao público o que lhe influenciou, sem que haja uma transformação", diz ele. "A ideia é triturar o máximo que puder até as referências virarem uma massaroca – afinal, são dezenas de assuntos que, aparentemente, não combinam entre si, mas fazem parte de uma mesma família."
Depois de compilar tudo o que observou, Campion desenvolve vídeos que servem de referência para a produção industrial.
Para manter as vendas em alta, a AMP tem apostado no ecommerce. Há seis meses, a empresa trocou de plataforma virtual, o que ajudou a operação online crescer 320% em 2016.
Para divulgar as peças na internet, a marca possui uma rede de 200 garotas consumidoras da marca que postam fotos com peças da AMP em suas contas no Instagram.
Em contrapartida, elas ganham cupom de desconto e uma comissão sobre as compras de seus seguidores. A relação com as garotas se deu de forma orgânica, pois elas já fomentavam a marca por conta própria.
A empresa não utiliza blogueiras que criam post publicitários pagos – tática comum usada por marcas de vestuário e cosméticos.
Após a retomada do crescimento econômico, o estilista empreendedor quer desenvolver novas lojas AMP no modelo de departamento, em que todas as marcas serão expostas com ofertas para o grande público.
”As lojas de departamento do Brasil estão melhorando muito, como a Riachuello, mas ainda estão longe de serem realmente boas”, diz ele. “Acredito que a AMP poderá atender um novo mercado que está surgindo, mais culto e preparado para consumir design.”
IMAGENS: Divulgação