Quando a vítima é que é punida
Projeto de lei dificulta ainda mais a vida de mulheres que sofrem violência sexual.
No Brasil, o aborto é assunto dos mais polêmicos, capaz de provocar reações intransigentes e até apaixonadas.
Direito à opinião todo mundo tem. Mas quando a intransigência toma a forma de projetos de lei que ferem princípios legais e constitucionais, há que se analisar a situação à luz da razão. E da lei.
É sob essa ótica que deve ser debatido o Projeto de Lei 478 (de 2007), dos deputados Luiz Bassuma (PT-BA) e Miguel Martini (PHS-MG), também chamado de Estatuto do Nascituro. Uma de suas propostas é modificar o Código Penal no que diz respeito à permissão para o aborto.
Atualmente, essa prática é autorizada quando a gestação coloca em risco a vida da mulher, e quando a gravidez é resultante de estupro. Mas se o Estatuto do Nascituro for aprovado, a vítima de violência sexual perderá o direito de interromper a gravidez.
E tem mais. O projeto estabelece em seu artigo 13 que o nascituro concebido em consequência de um ato de violência sexual terá direito à pensão alimentícia equivalente a um salário mínimo, até completar 18 anos – o que já recebeu o infeliz apelido de “bolsa estupro”.
Estipula ainda que, se o pai for identificado, será ele o responsável pela pensão. Se não for identificado, ou se for “insolvente”, a obrigação recairá sobre o Estado.
A proposta apresenta uma série de inconsistências legais. Pela lei atual, o boletim de ocorrência e o exame de corpo de delito são suficientes para que seja comprovada a agressão sexual e a mulher obtenha a autorização para interromper a gravidez.
No entanto, para reconhecer a paternidade e pleitear pensão alimentícia, essas provas dificilmente bastariam. Trata-se de uma regra elementar do Direito de Família.
Não se pode obrigar um suposto pai a pagar pensão a um suposto filho se a paternidade não for estabelecida. E a paternidade não pode ser estabelecida se o pai for desconhecido. Sendo assim, com base em que se obrigaria o estado a arcar com esse ônus?
Por outro lado, caso o agressor seja identificado, a mulher que ele violentou poderá se encontrar na terrível situação de ter de mover um processo de investigação de paternidade contra o próprio homem que a estuprou.
Se for mesmo o pai, seu nome passará a constar na certidão de nascimento da criança, o que não descarta a eventualidade de que ele reivindique o direito de visita e até a guarda do filho.
Afinal, o Código Civil prevê a possibilidade de que os pais que já cumpriram suas penas, e não voltaram a reincidir no crime, venham a recuperar seus direitos em relação aos filhos. Portanto, em tese, o mesmo valeria para os estupradores – por mais aberrante que isso possa parecer.
Mas os absurdos não param por aí. Conforme foi dito, é preciso identificar o estuprador para comprovar a paternidade. E uma vez que seja identificado, ou irá para a cadeia, ou se tornará foragido da justiça – situações nas quais não poderia pagar pensão alimentícia.
Se essas circunstâncias bastarem para que ele seja considerado “insolvente” – expressão um tanto vaga que o projeto não se dá ao trabalho de esclarecer - a pensão ficaria a cargo do Estado.
Sendo assim, o que impediria outras mulheres, que não foram vítimas de violência sexual, mas cujos maridos ou companheiros se encontram presos ou foragidos, de reivindicar do Estado o mesmo benefício para sua prole?
Será que algum juiz poderia, em sã consciência, dizer-lhes que seus filhos terão de continuar passando fome porque elas não foram estupradas?
Algo que falta ser acrescentado a esse debate é a opinião das mulheres vítimas de estupro, e que se veriam obrigadas a prosseguir com uma gravidez resultante de um crime se o projeto virar lei. Por acaso alguém se preocupou em ouvi-las?