O fim dos meios
Ou o País põe fim aos meios que nos levaram a este estado de coisas, ou continuará sem meios para chegar a qualquer fim
Não há fim sem meios.
Não há na vasta obra de Antônio Vieira frase mais útil à compreensão do drama que vive o País nestes últimos dias.
Cunhada em momento trágico para Portugal e Brasil, a frase atravessou quase quatro séculos para cair como uma luva na nossa tragédia cotidiana.
E ela é tão abrangente que se espraia por todos os campos de opinião a respeito do mais recente escândalo que abala a República.
Inicialmente, parece se tratar do fim e dos meios da delação que envolveu o atual e ex-presidentes, bem como figuras de relevo da política.
De um lado, clamam os acusados que justiça não pode ser feita por meios (gravações) e agentes (delatores) duvidosos.
Do outro, respondem os acusadores, de que o fim, a defesa do interesse público, justifica os meios, entendidos como instrumentos legais.
Na verdade, o fim e os meios estão bem além da denúncia em si, e os dois lados não se colocam necessariamente dessa maneira, tanto em relação ao fim, como no que diz respeito aos meios.
Como muitos dos acusadores de hoje são os acusados de ontem, o debate está envenenado pela paranoia conspiratória e pela ideologia, enquanto os grandes interesses que apequenam a política nacional tratam mais de desinformar do que informar a opinião pública.
É nessa feira livre de gritos e pechinchas, a esta altura na xepa, que está se vendendo o que sobrou: tempo. E o Brasil entrou em compasso de espera, sem saber o que esperar de tudo isso, esperando por um tempo que não tem.
A desfaçatez e o oportunismo de algumas declarações neste domingo estão mais para o burlesco, mas o desprezo pelo bem público que elas trazem embutidas demonstram muito bem os perigos que pairam sobre o País.
Mais recessão e desemprego? Continuidade da corrupção e da impunidade? Fim da Lava-Jato e das reformas para viabilizar o País? Sem dúvida, é uma soma de medos capaz de despertar paixões legítimas e sinceras, mas também de servir às mais sórdidas intenções.
A frase cortante de Vieira jamais significou que o fim justifique os meios, mesmo em algumas situações, como sugerem certos desmoralizadores da moral bastante ativos. E tampouco ela está perdida em algum passado rococó.
O que de mais atual persiste na concepção ética de Vieira é a contextualização circunstancial das pessoas e práticas, segundo um compromisso com o bem.
Historicamente, há que julgá-las pelo que foram e fizeram, em cada situação, na medida em que tentaram realizar ações boas que levassem a bons resultados.
Meios e fim estariam inextricavelmente ligados, a começar nas pessoas e nas suas ações.
Como tal, essa ética pode ser aplicada à reflexão sobre a aguda crise que tomou o País.
Onde estão o fim e os meios?
Acusações, defesas e conspiratas giram em torno de um grande ponto: as reformas em discussão no Congresso.
O governo delas faz sua grande raison d’être; a atual oposição quer implodi-las, mais até do que ao governo; e uma legião de desconfiados crê piamente que é por causa delas que se armou toda essa confusão.
Isto posto, cabe perguntar: desde quando as reformas passaram a ser defendidas pelas pessoas que constituem esse governo e faziam parte do anterior, deposto pelo impeachment?
Como a insolvência, a recessão e o desemprego tornaram necessárias as reformas fiscal, previdenciária e trabalhista, o governo alega que esse é o objetivo maior, o fim em torno do qual todos devem se reunir, diga-se, em torno dele governo.
Esse é o cerne da crise e do impasse. O governo tem um fim útil à sociedade ou é um fim em si mesmo? Os meios por ele usados para atingir esse fim, seja lá qual for ele, podem nos dar uma pista. Vamos às circunstâncias desses meios.
Primeiro, as pessoas, e não há como a resposta ser boa. Que reformas podemos esperar de pessoas sob suspeita da Justiça e da sociedade, que se confundem com as que foram defenestradas do poder?
Em seguida, as práticas, e a resposta é pior. Que reformas resultarão deste contexto de corrupção que persiste apesar de todo clamor popular que derrubou o governo Dilma?
Serão essas reformas suficientemente sólidas, honestas e duradouras se conduzidas por tais pessoas e por intermédio de suas práticas?
Diante desses questionamentos, conclui-se que, para as pessoas que governam o País, as reformas não são fim, são apenas meios.
Para elas, não fazer as reformas antes ou sequer cogitá-las, como parte que eram do governo anterior, era tão somente meio, sempre, numa e noutra situação, para atingir o mesmo fim: poder.
Neste momento, o Brasil precisa de um excepcional assomo de coragem para enfrentar a dura realidade.
Não há competência técnica, não há esperança do povo, não há urgência social ou necessidade econômica que consiga superar a crueza dessas pessoas e a perversidade de suas práticas reveladas em toda extensão.
Os fins só são válidos se os meios forem bons.
Ou o País põe fim aos meios que nos levaram a este estado de coisas, ou continuará sem meios para chegar a qualquer fim.
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