De empreendedor serial a mentor da arte do queijo no Brasil
Empreendedor calejado, com mais de dez empresas abertas (e fechadas), Fernando Oliveira garimpou e organizou produtores de queijos artesanais no país até criar um novo mercado. Sua loja, A Queijaria, exibe um painel da produção nacional.
Do sítio modesto do seu Zé Mario, em São Roque de Minas, na Serra da Canastra, saem os queijos artesanais mais premiados do Brasil. E alguns dos mais caros. Parte da produção está à venda, há dois anos, em uma casinha caprichosa de esquina na Vila Madalena, na zona oeste paulistana.
Antes de 2008, queijo canastra era apenas uma curiosidade regional, vendida a preço irrisório. Até ter seu valor gastronômico e cultural percebido pelo paulistano Fernando Oliveira. O trajeto entre a serra mineira e o descolado bairro paulistano envolve seis anos de trabalho duro e, em especial, uma sacada de empreendedor calejado em abrir e fechar negócios.
Na loja, o ar rescende fortemente a queijo curado. Dezenas de tipos de queijos artesanais, distribuídos em móveis de madeira rústica, estão identificados e prontos para a degustação dos curiosos. O aroma impregna a vida de Fernando Oliveira desde que redescobriu a produção da Serra da Canastra, no sul de Minas.
Durante cinco anos, o empresário se dedicou a burilar um mercado incipiente, resgatando técnicas esquecidas e ensinando pequenos produtores, garimpados em vários estados, a adotar processos de qualidade e higiene.
Patrimônio nacional
Uma das tarefas de Fernando consistiu em tirar o canastra da clandestinidade. Mesmo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio histórico imaterial do Brasil, o queijo mineiro continuava submetido a uma lei sanitária de 1952 que proibia a comercialização de produtos feitos de leite cru fora do local de origem. E leite não pasteurizado é a alma do canastra. A iniciativa abriu caminho para os produtores de outros estados também receberem o título do Iphan.
Em suas pesquisas, ele levantou o véu que escondia excelentes produtos regionais, camuflados sob denominação européia para ter melhor aceitação do mercado.
Quando avaliou que havia um número suficiente de produtores desenvolvidos, abriu A Queijaria, a primeira loja do Brasil dedicada exclusivamente à produção nacional de queijos artesanais. A empreitada se encerra neste ponto, por enquanto. De acordo com Fernando, não há planos de montar uma rede, de criar uma marca de franquia ou atrair fundos de investimento. Enfim, contrariando o pensamento padrão, nada de criar escala. O nome do jogo para Fernando é valor agregado.
Queijos prontos para degustação na loja A Queijaria, na Vila Madalena
Precificando o intangível
Há sete anos, o quilo de queijo, vendido apenas localmente, custava R$ 6,50. Hoje, o preço médio no produtor é R$ 50,00. “Com um investimento mínimo, com as mesmas vaquinhas, a mesma área da fazenda, com as mesmas pessoas da família, os dez produtores com quem trabalho aumentaram pelo menos oito vezes a renda”, conta Fernando. “Sem mudar nada no jeito de viver.”
“Não interfiro nos costumes locais”, conta. Seu trabalho consiste em ensinar os procedimentos indispensáveis para a comercialização e em ajudar os produtores a se formalizarem. “Trago a produção do mês no meu carro”, brinca. Ao longo do ano, a variedade vendida chega a 130 tipos. A maior parte fica na loja na Vila Madalena e o restante é retirado por alguns restaurantes e empórios.
“Este jeito de trabalhar faz parte do trabalho de educação que assumi para dar vida a este mercado. Nestes queijos, existe uma cultura riquíssima e ignorada pela maioria dos consumidores brasileiros”, diz. Ele aponta dificuldades enormes no caminho dos produtores, “a começar pela falta de visão das instituições oficiais”. Mesmo assim, o trabalho de Fernando Oliveira para estruturar uma cadeia produtiva inédita está por trás do movimento ascendente de novos produtores, empórios e representantes dedicados ao queijo artesanal.
Para o especialista em economia criativa, Erick Krulikowski, da consultoria eSetor, o negócio desenvolvido por Fernando Oliveira “pode ser considerado um exemplo perfeito deste novo setor de mercado. Ele trabalha com um ativo do patrimônio intangível, a tradição cultural que há por trás de uma iguaria como o canastra; deu um novo significado para hábitos regionais enraizado; para desenvolver a cadeia produtiva apoiou-se na geração de valor agregado e não na produção em escala; e abriu novos caminhos para o produto em outras cadeias, como a gastronomia e o turismo de experiência.”
Desconfiança mineira
Quando voltou à Serra da Canastra, em 2008, ele pretendia apenas reviver a memória de um queijo incrível, provado em viagens com o avô na infância. No sítio do seu Zé Maria, encontrou um produto igual. Mas a receita da cura do produto havia se perdido.
Ali mesmo, ele teve um vislumbre do potencial do produto. “Foi suado. Só descobri o modelo de negócio depois de vencer desconfianças, um ano convivendo com o produtor, literalmente pousando na casa dele.”Terminaram amigos. Tem sido assim com cada um dos produtores descobertos pessoalmente em Minas, Pernambuco, Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul. “Não tem outro caminho a não ser pela conquista de confiança. Construí a empresa com os produtores.”
Foram cinco anos de estrada até ter uma rede consistente de produtores. A convivência, no entanto, não pode ser interrompida. “Eles precisam ter confiança de que em seis meses estarei de volta. É a base do negócio”, ressalta. Antes da criação da loja, os produtos eram vendidos pela internet, na empresa de e-commerce do empreendedor, Alimento Sustentável, atualmente em compasso de espera.
Empreendedor serial
Sim, ele teve uma empresa antes. E outra e outra. Por baixo, foram mais de 10, uma série iniciada aos 16 anos. Sem contar o sebo de gibis na infância. Não consegue parar. “Sou empreendedor desde que nasci. Era fascinado pela alfaiataria do meu avô, passava o tempo lá ajudando.” Ajudou nesta trajetória ter se formado em educação física, feito pós em Sociologia de Educação e em Administração e Organização de Eventos e trabalhado como professor universitário.
Ter reproduzido à exaustão e com energia a lei natural do empreendedorismo –falhar, falhar antes de acertar – não o isentou de dor, culpa e desencontros. “Passei por todas as circunstâncias - dívidas, ficar sem dinheiro para a escola dos filhos, ameaça ao casamento, perda de amigos, oposição dos pais. Tudo o que um empreendedor pode fazer de errado, eu fiz. Não fui irresponsável, mas reconheço que exagerei algumas vezes.”
Com as contas acertadas e um negócio estruturado e rentável, o resultado hoje , “é a valorização do momento e de quem se manteve firme ao meu lado nestes 10 anos de buscas e muito aprendizado. Hoje, tenho um negócio que sustenta minha família e outras 50”. Bancos e ex-amigos ainda não tiveram vez.
Hiperatividade
Não que tenha mais tempo atualmente. O garimpo pela arte brasileira do queijo continua, agora facilitado pela notoriedade que ganhou no meio. As exigências, porém, permanecem inegociáveis, assegura. “Recuso 95% dos produtos que me oferecem, não abro mão da autenticidade do produto e do formato tradicional de produção.”
Uma semana é passada em São Paulo, a outra na estrada. A cada viagem, faz um rodízio de visitas às propriedades e de busca de novos tesouros. “Neste negócio, pesquisa na internet não funciona. Precisa ser pessoalmente, de porteira em porteira.”
Na agenda do empreendedor, novos projetos borbulham, como a produção de eventos de degustação feitos na rua, cursos de divulgação e formação de queijeiros, palestras em empresas, tours pelas rotas nacionais do queijo (que ele costuma guiar pessoalmente) e até a organização de uma comitiva de parceiros à França para apresentar a produção brasileira. Para recuperar as antigas técnicas de produção e cura dos queijos, ainda hoje se envolve pessoalmente nas pesquisas técnicas.
O jeito orgânico de empreender
Só não precisa mais jogar nas sete posições na empresa. Depois de duas décadas de empreendedorismo, tem para quem delegar as tarefas do dia a dia. “Hoje, entrego o que não sei fazer para quem entende.” O gerente financeiro, braço direito para manter a empresa equilibrada, começou com ele como entregador até se formar em administração.
Tábua de queijosna loja A Queijaria
O empresário também tem a pessoa da logística e a pessoa do administrativo. São 15 funcionários na loja, “a maioria moçada, para quem procuro mostrar que existe um projeto de vida, não apenas A Queijaria. Eles viajam comigo, se envolvem com os produtores, fazem os cursos. E ficam. Em dois anos, perdi apenas três.”
Tudo faz parte do que chama jeito orgânico de tocar um negócio (que nenhum consultor ouça). “Nunca fiz um planejamento estratégico, apesar de ter estudado marketing e planejamento; minha divulgação é o relacionamento e o boca a boca. Acredito que a vida precisa ser orgânica, correr naturalmente e ser vista no longo prazo. Não vou criar uma Queijaria em cada esquina, nem uma marca de franquia. A loja é a vitrine de uma cadeia de produção.”
Além do site Alimento Sustentável, voltado para a distribuição de produtos orgânicos certificados, e de uma ONG dedicada a eventos, ele tem um sítio em Morungaba, no interior de São Paulo, onde instalou uma área para fazer a maturação de alguns queijos canastra. “Embora as margens sejam muito apertadas, a empresa é saudável, temos faturamento bom.”
Parte desta visão orgânica do negócio consiste em dar tempo para que o queijo ganhe identidade. Como um exercício de branding, ele procura ensinar o produtor a encontrar esta marca em cada produto. “Dá trabalho, a gente faz besteira. Mas não tem receita pronta.”
Após a produção, os queijos passam pelo processo de cura para ganhar sabor e personalidade
A boa concorrência
Nem todo mundo consegue seguir nesta trilha, ele reconhece, e a primeira baixa é a credibilidade do produto. Com a expansão do mercado, a ansiedade pela produção em escala tem surgido com força. “É muito difícil manter a levada artesanal na grande produção. Não abro mão de trabalhar apenas com microprodutores, que produzem até 200 quilos por mês.” Da rede inicial formada por ele, pelo menos cinco foram cortados por expandirem a produção.
Por outro lado, ele sabe que o mercado segue sua marcha inexorável. Prevê que o segmento de queijos especiais do Brasil, artesanais ou não, logo terá seu espaço assegurado no setor de alimentação. “O interesse é crescente, o mercado vem quase triplicando a cada ano entre produtores e consumidores. Prevejo a abertura de queijarias em cada esquina, como na França, e fico orgulhoso por ter tido o papel de delineador do mercado.”
Um dos concorrentes mais ativos, Bruno Cabral, fundador do site e da loja Mestre Queijeiro, em São Paulo, fez parte da roda de parceiros e clientes de Fernando Oliveira. “Temos um acordo de trabalhar com produtores diferentes para mostrar a variedade de produção do país”, disse. “Este é o papel de que mais gosto, de ponte entre produtores e consumidores, para ensinar que temos um produto com a mesma qualidade dos melhores do mundo.”