A efervescência do comércio paulistano no começo do século XX
No livro "A Capital da Vertigem", o jornalista Roberto Pompeu de Toledo (na foto) estuda as intensas mudanças vividas por São Paulo no começo do século passado. Confira a entrevista com o autor.
Das construções de taipa, passando pelas obras de tijolos, até o concreto armado. São Paulo se reinventa e se reconstrói de tempos em tempos. Fundada em 1554, a pequena vila se tornou uma das metrópoles mais importantes do país em questão de três séculos e meio.
Uma cidade que viveu a vertigem das grandes mudanças: a riqueza do café, a chegada dos imigrantes, a industrialização, os movimentos artísticos e a explosão demográfica. E, desde então, não parou mais.
Todos esses temas são abordados no livro "A Capital da Vertigem", da editora Objetiva, escrito pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo. A obra é uma continuação do estudo iniciado em A Capital da Solidão, que retrata o pacato vilarejo das origens a 1900. Em entrevista para o Diário do Comércio, Toledo falou sobre o desenvolvimento do comércio durante as primeiras décadas do século XX.
Diário do Comércio - Nas primeiras páginas de A Capital da Vertigem, o senhor descreve que existiriam duas cidades de São Paulo, a primeira foi retratada em A Capital da Solidão e a segunda que emerge na virada do século XX. Como o comércio pode ser visto nesses dois momentos históricos?
Roberto Pompeu de Toledo - Existem diversas distinções, a primeira é a localização. A cidade era confinada no que hoje chamamos de centro histórico: entre o Vale do Anhangabaú e o Rio Tamanduateí. São Paulo demorou em sair desses limites. Nesse período, o comércio se concentrava principalmente nas ruas São Bento, Direita e 15 de novembro [essas ruas eram conhecidas como triângulo por causa das suas disposições no mapa em que elqw formavam a figura geométrica].
Todas as lojas estavam nessa localização – tanto as que vendiam artigos de luxo quanto as de produtos populares. A expansão começa em 1882 com a criação do Viaduto do Chá. Um dos pontos cruciais foi a mudança do Mappin, a principal loja de departamentos da cidade, da Praça do Patriarca para Praça Ramos de Azevedo, em 1939.
Foi um passo ousado porque tudo acontecia no centro e mais especificamente no triângulo. O risco valeu a pena. Isso incentivou outros comerciantes a se mudarem para o outro lado do viaduto. Com o passar dos anos, a ruas Barão de Itapetininga, 24 de Maio e 7 de Abril se tornam centros importantes de comércio.
Outro fator importante é a explosão demográfica que faz com que o comércio ganhe amplitude. De um vilarejo de pouco mais de 30 mil habitantes em 1872, a cidade passa para 250 mil na virada do século e chega 3 milhões no final da década de 1950. Os comerciantes se expandem junto com a cidade.
Então é possível fazer uma relação direta entre as reformas urbanas da cidade com a distribuição do comércio?
Sim, é possível fazer essa relação. Durante esse período ocorreram duas grandes reformas. A primeira tem início em 1910 e esses planos urbanísticos vão se desenvolvendo nas décadas seguintes, com a criação do Parque Dom Pedro e ampliação das ruas que ficavam no entorno do centro histórico, como Líbero Badaró e a Boa Vista.
Isso é muito importante porque permitiu uma distribuição circular do trânsito e poupou o miolo de uma reforma que o descaracterizasse. A construção de uma grande avenida nesse espaço se tornou desnecessária na medida que você pode percorrer pelas bordas. A Rua Líbero Badaró, por exemplo, depois do alargamento, se transforma de um centro de prostíbulos para um local de estabelecimentos de luxo, como o restaurante e hotel Rotisserie Sportsman.
A segunda grande reforma foi realizada pelo prefeito Prestes Maia a partir de 1937. Abrangem os planos das grandes avenidas, como a Ipiranga e São Luis. Esses locais vão atrair um grande número de pessoas e, consequentemente, de comércio. Essa reforma também criou grandes avenidas radiais para ligar o centro aos bairros. Com essas obras, estava pronto o palco para expansão do comércio por toda a cidade.
A importância dos imigrantes nessa fase do desenvolvimento da cidade é inegável. Mas geralmente isso está atribuído aos grandes industriais, como os Matarazzo e Crespi. Os imigrantes foram tão fundamentais no comércio como foram na indústria?
Sim, principalmente se relacionada com a migração de sírios, libaneses e judeus. Eles tiveram mais importância no comércio do que na indústria. Eles criaram ruas especializadas, como a 25 de Março, que se tornou um local de concentração de sírios e libaneses, e a Rua José Paulino, no Bom Retiro, que concentrava diversas lojas de tecidos e de móveis. Mesmo esses italianos, como Crespi e Matarazzo, foram comerciantes também. O comércio era uma conseqüência da indústria.
No livro, o senhor aborda o mito que se formou em torno desses imigrantes que se tornaram industriais ou comerciantes de sucesso. Existe uma narrativa que foi construída de que todos os estrangeiros que chegavam no Brasil eram pobres que vinham na terceira classe dos navios. Da onde veio essa concepção?
É uma concepção romântica, e essas histórias se tornaram muito atraentes. É o mito do “self-made man”. Ao pesquisar sobre a origem da maioria desses imigrantes, é possível perceber que eles já tinham capital para investir quando chegaram no Brasil.
Muitos deles vieram atraídos pelo mercado formado por seus compatriotas. É importante considerar que, entre 1880 e 1920, os imigrantes eram mais númerosos em São Paulo do que os próprios brasileiros. Eles tinham hábitos diferentes que precisavam ser supridos.
O chapéu de feltro utilizado pela maioria dos europeus, por exemplo, não era muito comum no Brasil, onde era utilizado o modelo feito de palha. Percebendo essa necessidade, um imigrante fez uma indústria de chapéus. Na alimentação, isso também aconteceu. Os europeus começaram a fabricar as massas, que até então não era uma coisa apreciada pelos brasileiros. Os europeus trouxeram novos hábitos para a cidade.
Além dessas mudanças de consumo por causa dos estrangeiros, a cidade está em processo de transformação por causa de diversas transformações ocorridas na virada do século XX. Em todo o mundo, as lojas começam a ganhar vitrines e luminosos e a influenciar novos hábitos, como o ato das pessoas de saírem para a rua. Como se deu esse processo em São Paulo?
Esse é um período em que a eletricidade passa a fazer parte da vida das pessoas. A luz era vista como algo milagroso naquela época, algo que pode ser comparado com a internet para a minha geração. Era uma grande novidade ver uma cidade iluminada.
Antes existiam apenas pequenos focos de luz movidos a óleo ou a gás, que serviam mais para o orientar o caminho do que para realmente iluminar. O comércio logo descobre o potencial da luz e da exibição.
Começou a existir uma preocupação em exibir os produtos e a mostrá-los de uma forma mais atraente. Esse fenômeno começa nos países da Europa e chega, posteriormente, ao Brasil.
Antes disso, a exibição dos produtos era feita de forma muito precária. É possível observar nas fotos de Militão Augusto de Azevedo – que datam de 1860 – que os produtos ficavam desorganizados dentro das lojas. Tampouco havia preocupação com a apresentação. Eram apenas coisas amontoadas.
A descoberta dessa nova forma de exibir e iluminar os estabelecimentos é decisiva para o comércio e passa modificar a paisagem urbana. A vitrine é uma forma das lojas se abrirem para cidade.
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Esse é o período também que cidade começa a receber investimentos de grandes empresas estrangeiras, principalmente da canadense Light. Porque eles decidiram investir na cidade?
Eles enxergavam o que estava à vista de todos: a cafeicultura estava transformando a província de São Paulo e conseqüentemente sua capital. Eles fizeram uma aposta e deu muito certo.
No caso da Light, tudo começa como a exploração do transporte público por meio dos bondes elétricos e, posteriormente, evoluiu para uma grande produtora de eletricidade. O ponto culminante é a construção da usina de Cubatão: uma incrível obra de engenharia e, ao mesmo tempo, uma fantástica agressão à natureza.
A eletricidade é fundamental para entender a mudança radical que aconteceu entre os séculos XIX e XX. A Light era um polvo que foi alastrando seus tentáculos num processo de monopolização. Começou com a eletricidade, depois foi para o telefone, companhia de água e gás. Ela tinha basicamente o domínio dos serviços públicos da cidade. Naquela época, o polvo já estava em todos os cantos.
Um dos momentos mais importantes desse período é a Revolução Constitucionalista de 1932. Qual foi a participação dos comerciantes nesse momento?
Todos entraram nessa onda e foi algo avassalador na cidade. Foi um dos primeiros grandes movimentos políticos desencadeados por um meio de comunicação de massa, que no caso era o rádio. Manifestantes invadiram a rádio Record, uma das principais da época, e obrigaram o locutor a ler um manifesto.
Depois desse episódio, a emissora se tornou a porta-voz do movimento paulista. Eles transmitiam o tempo todo as marchas militares que ajudavam a incitar a população e a incendiar os corações. E todos foram juntos: industriais, comerciantes e classe média - apenas os operários ficaram de fora.
Durante esse período, a indústria teve que se adaptar às necessidades bélicas e começaram a fabricar armamentos, munições e as roupas dos soldados. Foi uma febre que dominou a cidade.
É possível ver resquícios da cidade retratada no livro nos dias hoje?
É possível, sim. As ruas do centro ainda preservam parte da história, principalmente o miolo do centro formado por aquelas ruas tortas e estreitas. Ainda há recantos muito charmosos, como o Largo do Café.
As edificações dessa região são das décadas de 1910 e 1920. Os prédios pioneiros ainda estão lá, como o edifício Sampaio Moreira, na Rua Líbero Badaró, e o edifício Guingle, na Rua Direita.
O sítio original da cidade – a colina entre dois rios – pode ser observado dos fundos do Pátio do Colégio. É possível perceber o barranco em que a cidade se concentrava.