Eis a longa história do Carnaval que você (talvez) não conhece
Pelo calendário cristão, a Semana Santa só apareceu no século 11. Mas foi só no século 16 que os europeus aceitaram enlouquecer nos dias que precedem a quaresma
O Carnaval é importante como data, mas indiferente para o comércio, porque – ao contrário do Natal ou do Dia das Mães – não se compram e nem se trocam presentes.
É verdade que o país entra por quatro dias em estado de (ruidosa) inércia. O que afeta de alguma forma o PIB.
Mas já era assim desde que o Carnaval começou a ser festejado por aqui, com o transplante do entrudo português.
Poucos de nós conhecemos a história do Carnaval. Sabemos é uma festa baseada no calendário da Igreja e comemorada sem data fixa, no mínimo a 3 de fevereiro e no máximo a 9 de março.
Numa conta de trás para frente, o Carnaval acaba 40 dias antes da Páscoa, que passou a ser lembrada todos os anos apenas a partir do século 11.
É então uma despedida para o início da Quaresma, período durante o qual se proibia aos cristãos o consumo de carne.
Mas uma forma embrionária do atual Carnaval já existia bem antes do cristianismo. Em Roma, havia as Lupercais, em que o povo saia às ruas para açoitar transeuntes com tiras de pele de bode.
Luperco era o deus dos pastores, e os açoites tinham a ver com o reforço da ideia de fecundidade. Outra explicação é a de que a festa protegia os rebanhos contra os lobos.
A palavra carnaval aparece em meados do século 16. Ela vem do italiano “carnevale” e significa subtrair o consumo da carne. Ou seja, a porta de entrada da quaresma.
Outra palavra que circulou em algumas cidades europeias a partir do século 17 foi "charivari", que significa barulho estrondoso ou música desafinada.
Vem do latim, “caribaria”, e designava uma folia anual marcada pelo travestimento ou inversão de papeis sociais.
O HUMOR CÁUSTICO CONTRA DISSIDENTES
O charivari mais bem estudado é o da cidade francesa de Lyon, por volta de 1650. A historiadora Natalie Zemon Davis, hoje com 89 anos, reproduz testemunhas que, ao simplesmente andarem pela cidade, cruzavam com muitos papas, cardeais, carrascos ou supostas freiras, todos comicamente paramentados.
Uma das anomalias que esse tipo de festejo castigava era a intervenção dos mais velhos no mercado conjugal dos mais jovens.
Explicando melhor: foliões os arrancavam de suas casas e os amarravam no lombo de burros os homens mais velhos que se casaram com uma adolescente, ou mulheres viúvas que se casaram com um rapazinho.
Os cônjuges mais velhos eram punidos porque tiravam da juventude uma noiva ou um noivo, o que, indiretamente, condenaria alguém ao celibato.
O marido traído já era gloriosamente lembrado. Capturado, era amarrado sobre um burro, com a cabeça voltada para o bumbum do animal.
E, ao desfilarem com ele pela cidade, os foliões exortavam os passantes a atirar ovos podres ou frutas estragadas.
Não são muito simples e nem unânimes as explicações para essa forma carnavalesca de punir dissidentes da moralidade pública.
Mas uma das versões mais aceitas é a de que, ao atacarem o que se consideravam impróprio, os foliões reforçavam as ideias mais ortordoxas e conservadoras de comportamento.
Isso também valia para o empregado que se vestia de patrão, e cujo patrão, vestido de empregado, o transportava num carrinho pelas ruas movimentadas por foliões.
Assim, o carnaval não subvertia a ordem social. O papel dele consistia justamente em reforçar a hierarquia que prevalecia nos demais dias do ano nessas sociedades pré-industriais.
Nasce também nessa época, final do século 17, o trio emblemático de personagens da “commedia dell´arte” italiana, incorporado ao Carnaval de Paris.
São eles Pierrô, Colombina e Arlequim. No século 18 o trio se espalha para a Inglaterra, Alemanha, Espanha e Portugal.
O historiador romeno Mircea Eliade (1907-1986) tem para tudo isso uma curiosa e fértil interpretação religiosa. Para ele, o carnaval corresponde à abolição da ideia de tempo cronológico.
Na véspera da quaresma tudo é permitido, como se estivéssemos diante do fim do mundo.
Vem daí a própria subversão da separação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Foliões vestidos de cadáveres insepultos eram festejados com uma alegria incontrolável.
Essa ideia carnavalesca está por trás do lado festivo com que se comemora no México o Dia de Finados.
Em Veneza, que apresentava desde o século 18 o mais exuberante dos carnavais europeus, prolifera-se a figura do mascarado.
É a mãe de família que se mascara para beijar jovens desejados, é o sacristão que se veste de mulher ou o nobre que se paramenta grosseiramente como plebeu otomano.
NO BRASIL, O ENTRUDO PORTUGUÊS
Já por volta do século 15 Portugal festejava uma forma rudimentar de entrudo, pouco antes do início da quaresma.
No século seguinte, o Brasil importa da Ilha da Madeira o modelo de comemoração, mas apenas em alguns engenhos de Pernambuco e da Bahia.É algo pouco documentado para o período e, por isso, menos consensual entre os historiadores da cultura.
Com o passar do tempo, e com a liberação dos escravos pelos senhores para a efêmera folia, o carnaval passou a ganhar os mesmos instrumentos de percussão que, em Salvador, acompanhavam – com o consumo de toneis de cachaça –a lavagem das escadarias de Nosso Senhor do Bonfim.
A partir de 1808, com a família real estabelecida no Rio de Janeiro, a tendência dos cortesãos e da polícia consistiu em domesticar o carnaval por meio de bailes com espaço e horário delimitados.
A nobreza portuguesa e a oligarquia local consideravam o entrudo como algo lascívo, um fator de corrupção moral das classes mais pobres.
Foi também no Rio, já com o início da República, que surgiram os cordões, ranchos e blocos.
Chiquinha Gonzaga escreveu em 1890 a primeira marchinha, Ô Abre Alas!. O poder de expansão dos modelos culturais cariocas para o resto do país se encarregou do resto.
A urbanização no século 20 e a concentração das riquezas com o café trouxeram o carnaval a São Paulo, onde, em 1914,saía às ruas o Cordão da Barra Funda (hoje Camisa Verde e Branco).
Mas eram bem mais importantes, no Nordeste, os polos carnavalescos de Salvador e Recife, que criou sua própria música, o frevo.
No Rio, as gravadoras existiam, de início, apenas para as músicas de carnaval. Mas o nascimento do rádio (1923) se encarregou da difusão das marchinhas como fenômeno de massa, levando à prevalência, a cada carnaval, de um número limitado de melodias realmente populares.
E foi assim que somos todos descendentes desse conjunto complicado e muito rico de influências.
FOTO: Tomaz Silva/ Agência Brasil